A fúria dos mansos

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN2013-09-23
Princípios democráticos e valores cristãos, referências assumidas dos portugueses, recomendam vivamente respeito mútuo e diálogo construtivo que, compreensivelmente, nesta crise são raros. Os ânimos exaltam-se gerando as fúrias mais ardentes. Tais atoardas vêm, não só de pessoas agressivas, mas também de cidadãos honestos, antes pacatos.
O que leva a tais extremos é menos o sofrimento que o sentimento de injustiça. A iniquidade irrita. Ao contrário da dor, esta não é objectiva, resultando de uma interpretação; mas o ser humano é mais influenciado por opiniões que factos.
O desespero multiplica teorias que apontam culpados indiscutíveis, causadores de terríveis tropelias, em geral ocultas. Assim, indignados contra supostos meliantes, os cidadãos íntegros enfurecem-se. Essas teses não são tolas, com acusações sérias e sólidas. Mas em situação complexa e concebidas com informação parcial e enviesada são também frágeis. O que dizem é verdade, mas parte da verdade. Aliás a insistência em invocar vilões muito maus e estúpidos enfraquece-as. Explicações assim são sempre ingénuas e simplistas; assumir maldade acéfala é fugir à questão. Mas a fúria é má conselheira. Não só tolda o espírito, mas enche das suas razões, rejeitando opiniões diferentes. Acaba o diálogo.
Pior, muitas das teorias, tendo elementos verdadeiros e dramáticos, envolvem também erros óbvios. Qualquer análise serena constata a inanidade das acusações de propósitos sinistros a entidades públicas eminentes, Governo, troika, Merkel, etc. Assemelham-se ao doente que, confrontado com uma amputação, acuse o médico de sadismo. Na evidente gravidade da doença económica nacional, os cortes brutais não advêm de cegueira a custos sociais ou insensibilidade pela pobreza. Que razões desconhecidas, benefícios ocultos ou prazeres mesquinhos poderiam justificar tal ódio a pensionistas, funcionários e classe média? O mal é a gangrena. A terapêutica, apesar de terrível, é indispensável e urgente. Se os acusadores, que são razoáveis, atendessem bem ao que dizem, perceberiam a tolice da suspeita. Mas, afirmada de forma fogosa, contundente e indubitável, ela permanece e, obsessivamente repetida, ganha credibilidade.
Espanta que tantos ignorem olimpicamente a situação, apenas protestando, sem sugerir alternativas razoáveis de cura. É verdade que na confusão se cometem muito erros. Apesar disso, as autoridades tentam resolver o problema nacional; os vociferadores nada contribuem de construtivo e ignoram o sofrimento muito superior que adviria da ausência de medidas duras. Isso é até já evidente, pois o País acaba sofrendo mais cada vez que o Governo recua, como na TSU, ou o Tribunal Constitucional intervém.
Há erros mais subtis. Os que invocam o papão dos credores do Estado e os famigerados "mercados", não sabe que está a falar... de si mesmos. Dado quase toda a dívida pública estar hoje nos bancos nacionais, quem tiver depósitos bancários é alvo dos seus próprios impropérios. Se a dívida fosse repudiada, como aconselham, a perda cairia em sua casa.
Também acusar corruptos pela dívida nacional é cómodo, mas ignora o impacto mínimo dessas parcelas infames no total do drama financeiro. Os erros políticos foram sobretudo as benesses insustentáveis que os cidadãos agora defendem. E, se o conseguirem, arruínam o País. Compreendem-se lamentos por perda de direitos, mas sabemos que esses direitos -antes desconhecidos, hoje inalienáveis- nos trouxeram ao buraco. Para defender os próprios bolsos, muitos acusam malandros de encher os bolsos à sua custa. No fundo fazem precisamente aquilo que condenam. É por isso que a vítima nesta queixa é o ladrão da queixa alheia. Se cada um nos seus protestos quiser passar por indigente, a injustiça aumenta.
Em tempos de aperto protestar é saudável e justo. Mas a civilização exige respeito e diálogo, o que também reduziria os disparates. Este é um momento histórico. Muitas pessoas honestas terão de confessar aos netos que a fúria os fez parte do problema, não da solução.

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