A melhor usabilidade é a que não se vê

SANDRA FISHER-MARTINS Público 12/11/2015

A falta de clareza da comunicação continua a fazer com que muita gente dependa de outros para tratar da sua vida: é um direito por cumprir.
Nunca lhe aconteceu estacionar num parque subterrâneo e depois não conseguir encontrar o carro nem a saída certa? Ou estar a registar-se num site, enganar-se no último campo e, de castigo, ter de voltar a preencher tudo? Ou ainda receber uma carta das Finanças e ficar sem perceber se vai ficar sem o dinheiro das férias ou receber dinheiro com que nem contava? Tudo isto são problemas de usabilidade.
A usabilidade é aquilo que nos permite compreender as coisas e usá-las sem esforço. É tão natural que só pensamos nela quando nos falta. Como quando não conseguimos ligar o esquentador sem o manual de instruções e pensamos que deveria ser mais simples.
Para que se comece a pensar mais a sério nestas coisas que tanta diferença fazem no dia-a-dia de todos, a Usability Professionals’ Association (Associação dos Profissionais da Usabilidade) criou o Dia Mundial da Usabilidade, que se comemora na segunda quinta-feira de novembro.
«Pôr-te-ás na pele do outro»
Porque é que as cadeiras dos infantários têm metade da altura das cadeiras dos escritórios? Porque é que as melhores faturas destacam em letras garrafais o valor e o prazo para pagar? Bom, porque foram feitas a pensar em quem as vai usar. É este o primeiro mandamento da boa usabilidade: “põe-te na pele de quem vai usar as tuas criações”.
Para tal, como especialistas em usabilidade, estudamos, observamos e entrevistamos os utilizadores. Queremos conhecê-los tão bem que vemos o mundo pelos seus olhos e antecipamos os seus comportamentos e dificuldades. Mas não esquecemos nunca o segundo mandamento da boa usabilidade: “tu não és o utilizador». Por muita imaginação, empatia e experiência que tenhamos, só há uma maneira de saber se as nossas soluções funcionam: é pô-las nas mãos de quem as vai usar.
Fazer testes é semear para colher
Nos testes descobrimos frequentemente que as nossas ideias não são as obras-primas que imaginávamos. Mas são justamente estas facadas no ego que ajudam a melhorar o trabalho. Por exemplo, um teste a um folheto com oito páginas revelou que as pessoas com dificuldades de leitura não sabiam folhear: abriam-no ao acaso e só liam essa página. O problema resolveu-se substituindo o folheto por uma folha solta com o conteúdo mais importante.
Outro exemplo é o da empresa que precisava de ensinar os clientes a lidar com uma alteração tecnológica que poderia impedi-los de continuar a usar os seus serviços. Os testes permitiram aperfeiçoar instruções que 99% dos clientes conseguiram seguir sozinhos. E demonstraram que a oferta com que a empresa planeava incentivar os clientes era desnecessária – o que conduziu a uma poupança de 2 milhões de euros em créditos.
A maldição do conhecimento
Embora as vantagens de envolver os utilizadores na criação de um produto ou serviço pareçam indiscutíveis, no mundo real os obstáculos abundam. Não há tempo, não há dinheiro ou – a pior das desculpas – não há necessidade. Se acreditamos que o nosso bom senso basta para criarmos soluções fáceis de usar, para quê pô-las à prova? É o resultado da chamada maldição do conhecimento, a tendência natural para presumir que os outros também sabem aquilo que nós sabemos.
Esta maldição, um dos piores inimigos da usabilidade, também se manifesta na tendência dos especialistas de uma matéria para usar os termos técnicos do seu ofício, mesmo quando comunicam com quem não faz ideia do que seja uma “cefaleia associada a uma rinorreia posterior” ou uma “ciclogénese explosiva”. Sem uma linguagem clara não há usabilidade.
Somos a informar vossas excelências de que a clareza é um direito
A linguagem é talvez o domínio em que é mais difícil sairmos de nós para nos ver o mundo com os olhos do outro. O hábito e a inércia são forças poderosas que nos convidam a resistir à mudança. Num dos nossos cursos sobre linguagem clara, uma participante desabafou: “Foi assim que aprendi há vinte anos. Se não começar uma carta com ‘Em referência ao assunto supracitado...’, parece que a carta fica nua.” Aprender a fazer de outra maneira algo a que já nos habituámos mete medo e dá trabalho.
Além da força do hábito, a linguagem complexa e pomposa era tradicionalmente (e não será ainda?) um sinal de distinção social e uma ferramenta de poder: do Estado sobre os cidadãos, do Senhor Engenheiro sobre o João Analfabeto. Em 1970, cerca de 26% dos portugueses não sabiam ler. Este número ficou próximo dos 5% em 2011, mas ao aumento da alfabetização não correspondeu um aumento igual da literacia, ou seja, da capacidade de compreender o que se lê. Esta é ainda muito insuficiente: ao ler a bula de um medicamento, por exemplo, a maioria dos portugueses alfabetizados não a entende. A falta de clareza da comunicação continua a fazer com que muita gente dependa de outros para tratar da sua vida: é um direito por cumprir.
A usabilidade não se concede, conquista-se
Muitas organizações já compreenderam que só têm a ganhar se puserem o utilizador no centro das suas preocupações. Ganham em credibilidade e eficiência na relação com os seus clientes, e poupam tempo e dinheiro por não terem de responder a tantas reclamações e pedidos de esclarecimento.
Mas a responsabilidade também é do utilizador, ou seja, de todos nós. Da próxima vez que não for evidente como se mudam as pilhas do brinquedo novo, reclame. Da próxima vez que receber uma carta a dizer que “a posição formalizada por esta Seguradora não foi ao encontro da sua pretensão ... por entendermos que, de facto, o circunstancialismo fáctico enunciado não se reconduz a uma situação passível de ser subsumida no âmbito da cobertura facultativa de ‘Furto ou Roubo’”, não baixe os braços. Exija que lhe expliquem as coisas de maneira que compreenda. Não seria mais fácil se lhe dissessem simplesmente que “não podemos pagar a indemnização que pediu porque o que aconteceu não foi furto nem roubo”?
Fundadora da Português Claro

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