A gratidão em política

José António Saraiva, Sol, 11 de Maio de 2015

Sampaio da Nóvoa anunciou na semana passada, como era esperado, a sua candidatura a Presidente da República, perante uma sala de teatro cheia onde pontificavam Mário Soares, Jorge Sampaio e Vasco Lourenço.
Com grande vocação para a oratória, Nóvoa apresentou-se de forma algo messiânica: “Não venho para deixar tudo na mesma”. 
Mas politicamente decepcionou, não indo além de chavões como “não me resignarei perante a destruição do Estado Social” e apelando a uma espécie de democracia directa, na linha de Maria de Lourdes Pintasilgo. 
Parecia mais um dirigente da oposição a discursar do que a apresentação de uma candidatura à chefia do Estado. 
Pelo seu passado e pelas declarações que já fez, percebe-se que Nóvoa é um homem muito alinhado à esquerda, algures entre o PS, o BE e o PCP.
E acredito que transporte dentro de si um ideal.
Um ideal com qualquer coisa de revolucionário.
O que tem dois problemas: o tempo não está para revoluções e o Palácio de Belém não pode ser um centro de agitação.
A um Presidente da República pede-se isenção, ponderação, bom senso e sentido de Estado - e não exaltação política.
Mas mesmo os ideais por que Sampaio da Nóvoa se bate estão neste momento em crise acelerada.
Calculo que tenha aplaudido a vitória do Syriza na Grécia.
Ou a ascensão do Podemos em Espanha.
Uma frase sua, certamente não dita por acaso, indicia-o: “Podemos, sim”, afirmou a 14 de Março.
Mas a Grécia está hoje a braços com terríveis dificuldades - o Governo perde popularidade todos os dias e Varoufakis já foi afastado das negociações com Bruxelas - e o Podemos, que chegou a liderar as intenções de voto em Espanha, caiu para o 4.º lugar. 
Parece que a 'vacina grega' já está a funcionar. 
Nos últimos anos, as ilusões lançadas ao vento por políticos populistas têm sido um veneno, convencendo os povos de que a austeridade é uma mentira, de que não é preciso fazer sacrifícios, de que há óptimas alternativas, etc. 
As pessoas acreditam - e depois é que são elas. 
Os resultados estão à vista: a Grécia encontra-se à beira de sair do euro e a França safou-se porque Hollande não cumpriu nada do que prometeu.               
Ora, Sampaio da Nóvoa é desta escola de semeadores de ilusões. 
“A austeridade é um desastre. Todos o reconhecem, mesmo os seus autores, menos aqueles que vivem no país da propaganda do Governo” - disse, definitivo, há um mês. E adiantou que é preciso “acabar com esta política antes que ela acabe connosco”.
Mas onde foi Sampaio da Nóvoa buscar a ideia de que “todos reconhecem que a austeridade é um desastre”?
Todos quem?
As pessoas com quem fala?
Recordo que economistas de esquerda como Silva Lopes (recentemente falecido) ou Teodora Cardoso, e independentes como Vítor Bento - para não falar da maioria esmagadora dos economistas não inscritos em partidos -, sempre afirmaram que a austeridade em Portugal era necessária e inevitável. 
Quanto a “acabar com esta política”, que poderes terá Sampaio da Nóvoa, se for eleito, para o fazer?
O Presidente da República não governa, e Belém não é a sede do poder executivo...
Houve outra coisa em que não gostei da atitude do ex-reitor da Universidade de Lisboa. 
Quando começou a perfilar-se como candidato presidencial, disse que se sentia identificado com Eanes, com Soares e com Sampaio - omitindo Cavaco Silva. 
Ora, quem lançou publicamente Sampaio da Nóvoa, ao convidá-lo para discursar no 10 de Junho de 2012?
Precisamente Cavaco Silva.
Ou seja, dos quatro Presidentes eleitos desde o 25 de Abril, Nóvoa só ignorou aquele a quem ficou a dever o seu grande momento de projecção pública.
Claro que não era obrigado a referi-lo.
Mas podia não cometer a deselegância de elogiar expressamente os outros três, deixando Cavaco de fora. 
Podia ter feito as coisas de outra maneira.
Aliás, faz pouco sentido Sampaio da Nóvoa dizer que se sente identificado com os mandatos de Eanes, Soares e Sampaio, pois não existem quaisquer semelhanças entre eles.
Eanes foi um militar eleito em 1976 com o apoio de toda a direita (além do PS), que viu nele a pessoa mais bem colocada para acabar com o período revolucionário.
Herói do 25 de Novembro, Eanes teve por primeira 'missão' pôr fim ao poder da rua e fazer regressar os militares aos quarteis. 
O seu segundo mandato foi diferente, com a desastrosa iniciativa de fundar um partido.
Não vejo que pontos de contacto possa haver entre a actuação de Eanes no plano militar e civil - e uma eventual presidência de Sampaio da Nóvoa.
Quanto a Soares, o seu primeiro mandato foi um exercício de equilibrismo, que lhe garantiu o apoio implícito do PSD na reeleição; e o segundo mandato foi uma guerra aberta com o Governo de então, chefiado por Cavaco Silva, atropelando o PS e assumindo-se como líder da oposição.
Não creio que Sampaio da Nóvoa queira fazer o mesmo.
Quanto a Jorge Sampaio, é talvez o Presidente de quem Sampaio da Nóvoa poderia aproximar-se mais. 
Julgo, entretanto, que dificilmente teria aceite empossar Santana Lopes na chefia do Governo, como fez Sampaio (embora depois o tenha demitido). 
Tudo somado, não se vê nenhuma linha de continuidade entre os mandatos de Eanes, Soares e Sampaio que justifique Sampaio da Nóvoa tê-los metido no mesmo saco.
O que Nóvoa quis, portanto, foi deixar claro que renega Cavaco Silva, o Presidente que o lançou para altos voos.
Ora, por muito que a ideologia o justifique, a ingratidão não fica bem a ninguém.
P.S. - Na 4.ª-feira da semana passada, António Costa criticou severamente a greve dos pilotos da TAP. A crítica deve ter caído mal no PS. E no sábado, com a mesma cara, António Costa veio responsabilizar o Governo pela greve, por insistir na privatização da companhia. Um líder que muda de opinião de acordo com o vento,  não é líder...

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