Terra de ninguém
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.05.13
Sampaio da Nóvoa não existe politicamente e provavelmente terminará a sua candidatura presidencial sem ter chegado a existir. Alguns, por lealdade ideológica, fingirão acreditar que o estimável professor de História da Educação tem alguma coisa que ver com os problemas do país, mas é claro que não tem e, pior, nem sequer parece ter.
Candidaturas há muitas, mas poucas manifestam tal distância entre realidade e aparato. Como pode o Partido Socialista considerar seriamente um candidato assim? No século do Twitter e Syriza, nem a esquerda mais romântica se compadece com ingenuidades destas. Mas a escolha não foi por engano, incúria ou falta de alternativas. Constitui uma consequência lateral da estranha situação de impasse nacional que se vive há anos. A decadência já é antiga, mas dois mandatos de captura de 2014 proclamaram inequivocamente o fim definitivo do segundo Portugal europeu.
A esquerda tinha um líder natural, que dominou a cena durante mais de dez anos. Por isso a detenção de José Sócrates, a 21 de Novembro de 2014, um dos maiores choques políticos da história recente, criou um vazio esmagador, anulando não apenas o próprio mas outros pretendentes plausíveis. A grande vantagem de Sampaio da Nóvoa é precisamente nada ter que ver com a governação dos últimos anos, agora salpicada pelos milhões do Grupo Lena. Este episódio pessoal e partidário está ligado à questão mais decisiva da sociedade portuguesa contemporânea: vivemos nos escombros do segundo modelo europeu.
O nosso Portugal nasceu a 25 de Abril de 1974 e teve de encontrar uma identidade num mundo em intensa mudança. Passados os furores revolucionários, a resposta surgiu evidente: o país precisava de ser membro da Europa. Este foi o teorema formulado por Mário Soares em 1976 e concretizado por Cavaco a partir de 1986. Assim nasceu o primeiro Portugal europeu, conhecido como «bom aluno», atento, humilde e cumpridor. Falava-se muito de desafios e da necessidade de trabalhar. O resultado surpreendeu todos: a democracia foi estabilizada, a economia cresceu e a integração europeia concretizou-se. No início da década de 1990, quando em Maastricht nascia a União, o país já se sentia à vontade como membro: a Europa deixara de meter respeito inquieto.
Daqui surgiu o segundo Portugal europeu, atrevido, ambicioso e perdulário. Debaixo das facilidades financeiras permitidas pela participação no euro, iniciou-se um crescimento baseado em dívida externa. Foram os tempos de vida fácil, obras públicas e planos tecnológicos que levaram o endividamento bruto a explodir de 28% do PIB em 1992 para 253% em 2012. O delírio foi nacional e todos os sectores e classes nele participámos alegremente; mas alguns estiveram mais ligados à orientação do processo.
Dos vinte anos que medeiam entre as assinaturas do Tratado de Maastricht, a 7 de Fevereiro de 1992, e da carta de intenções à troika, a 17 de Maio de 2011, o PS governou 66% do tempo, atingindo com Sócrates a maioria absoluta. Essa foi precisamente a época em que Ricardo Salgado se tornava o «dono disto tudo». Por isso as duas detenções de 2014, de Salgado, a 24 de Julho, e de Sócrates em Novembro, simbolizam a derrocada final do modelo. Falhada a proposta, Portugal vive o impasse. Demorará anos até conhecer o seu futuro na evolução mundial, o terceiro modelo de participação credível e sustentada como país comunitário. Até lá, vivemos na terra de ninguém, indefinida e desolada, nas ruínas do paradigma anterior e sob a ameaça de réplicas que atinjam antigos dirigentes e das sequelas que condicionam o futuro.
Hesitante no caminho a tomar, a cena política pós-Sócrates é dominado por duas propostas principais. A primeira, do campo antiausteridade onde se move Sampaio da Nóvoa, propõe o recuo para o segundo Portugal europeu. A hipótese implícita é que os credores não só aceitam a anulação da dívida gigantesca, mas continuam a emprestar. Paradoxalmente, reúne consensos do Bloco de Esquerda às ex-administrações do BES e PT.
A alternativa, esboçada no Programa de Estabilidade 2015-2019 do governo e no relatório "Uma Década para Portugal" do PS, assume a travessia do deserto. A austeridade continua em anos de esforço, dureza e ajustamento. A dívida deve ser digerida e os destroços precisam de ser removidos, antes de se começar a construir o terceiro Portugal europeu, provavelmente nos finais da década. Por muito realista que seja esta avaliação, não admira que alguns prefiram a ficção política da generosa candidatura do professor Sampaio da Nóvoa.
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