A minha filha e a discriminação

Inês Teotónio Pereira
ionline, 2015.05.30

A nossa luta, a minha e a dela, tem várias frentes. Uma delas tem a ver com a força. Como eles a reconhecem como igual, lutam com a coitadinha como se fosse um rapaz.
Em minha casa tenho um problema de igualdade de género. Os meus cinco filhos acham que a minha única filha é igual a eles. Enquanto no mundo real existe uma diferença de tratamento em relação às mulheres e aos homens, sempre numa tentativa de combater a discriminação, promovendo-se a igualdade na diferença, em minha casa faz-se de tudo isto tábua rasa. A falta de discriminação da minha criançada é absolutamente chocante. E, assim, a minha filha sobrevive no meio de cinco rapazes num constante desassossego e sem direito a um tratamento especial por estar em clara minoria e por ser de um género diferente. 
A nossa luta, a minha e a dela, tem várias frentes. A primeira tem a ver com a força. Como eles a reconhecem como igual, lutam com a coitadinha como se fosse um rapaz, apesar de ela revelar claramente menos aptidão para a luta e de ter os cabelos mais compridos, o que faz com que tenha menos defesas e mais pontos fracos. Vai daí, a luta é sempre desigual. Quando eu intervenho, eles reclamam por não acharem justo que ela tenha direito a um tratamento especial só por ser rapariga e por estar em minoria. Explico teimosamente que não é assim, que as meninas devem ser tratadas com delicadeza, e ela especialmente, por ser a única entre cinco monstrinhos. Quando eu digo isto, é ela que reclama não ser mais frágil e que consegue muito bem ir à luta. Está claro que a coisa acaba invariavelmente mal: ela a chorar e eles de castigo.
A outra frente da luta tem a ver com o entretenimento. A televisão, por exemplo, está quase sempre tomada pelos rapazes, que se apropriam do comando e vão alternando entre programas sobre futebol e jogos de futebol. A minha filha só consegue ver a “Violetta” clandestinamente ou então comigo a defender este direito básico da minoria e a guardar o comando. Ou seja, o acesso à televisão por parte do género feminino em minha casa é uma conquista diária e não um direito adquirido. Também em relação aos brinquedos padecemos do mesmo mal. Em minha casa tropeça-se em todo o lado em bolas, carros, skates, soldadinhos, etc. Já bonecas, bebés chorões e coisinhas fofinhas cor-de-rosa são uma raridade e estão confinadas ao quarto dela. Perante isto, ela depara-se constantemente com duas possibilidades: ou brinca sozinha com as coisas fofinhas cor-de-rosa ou joga futebol, anda de skate e dedica-se a criar carreiras no Futebol Manager. O problema dela é que não gosta das brincadeiras deles e não gosta de brincar sozinha. Por isso, chateia toda a gente, para chamar a atenção para a sua luta através de gritos, birras e embirrações por tudo e por nada. 
A outra questão é a diferença propriamente dita. Ou seja, enquanto eles se entendem naturalmente com mais ou menos lutas ou com mais ou menos barulho, ela vive solitária na diferença, tendo como única aliada uma mãe, eu, que não sabe fazer trancinhas, não percebe nada de cozinha e não sabe uma única música da “Violetta”. 
A minha filha, tal como as mulheres do mundo, tem um difícil desafio pela frente: viver num mundo dominado pelos homens sem direito a um tratamento especial. O problema dela é que não quer ser igual a eles, quer apenas poder ser rapariga, reclamando para isso um tratamento especial. Não, em minha casa não há diferenciação ou sequer discriminação, é muito pior: existe uma espécie de laicidade de género. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António