Para a semana há mais

Inês Teotónio Pereira, ionline, 2015.05.23

É moda assistir, partilhar e explorar cenas das misérias humanas e escrever prosas filosóficas sobre cada uma e sobre o facto de assistirmos, partilharmos e explorarmos essa mesma miséria humana. Somos assim
Uma mãe vem a público, através do Facebook, afirmar que preferia que o seu filho estivesse no lugar da criança que ele matou. Ou seja, que preferia ter um filho morto a ter um filho assassino. Sobre o caso, opiniões: uma mãe não devia pensar e sentir o que disse e muito menos dizê-lo; por outro lado, é de louvar a coragem e verticalidade da mãe por ter posto a justiça à frente das emoções e do amor de mãe. O filho já tinha sido referenciado, o que atenua de alguma forma o comportamento dele e da mãe. Existe um contexto – sempre o contexto. Apesar do contexto, fizeram-se juízos e fizeram-se juízos sem qualquer dificuldade em interpretar quadros psicológicos, comportamentos, perceber fundamentos ou dilemas morais. Há sempre alguma coisa para dizer. Escreveu-se muito sobre isto.
Um polícia abraça o menino que assistia à tareia que outros polícias davam ao pai. A CMTV filmou. Está lá tudo. Não está o som, mas isso não interessa – e não interessa mesmo. Chocante, emocionante. Pediu-se a cabeça do comando, do superintendente, da ministra. Exigiu-se justiça rápida. A fotografia do polícia a abraçar o menino é linda – vai ser a fotografia do ano. Entrevistou-se a mãe do polícia que abraçou o menino e que confirmou a bondade do polícia bom. Está tudo nas imagens: o polícia mau, o polícia bom, o pai, o menino desesperado e o bastão. Podemos deixar entrar a indignação. Queremos a cabeça dos responsáveis pelo polícia mau. E queremos o nome, a morada, a matrícula do carro do polícia mau. Escreveu-se muito sobre isto.  
Em Guimarães, imagens sem som revelam pessoas a roubar coisas do armazém do estádio de Guimarães. Roubam calmamente, sem pressa, sem adrenalina nenhuma. Um roubo sem emoção. Não havia polícias a guardar o armazém cheio de coisas que se podem roubar. Um telemóvel filmou tudo. Onde estava a polícia? Como não havia polícia, deve ser de graça. Analisou-se o caso: o roubo e a polícia que não estava. O que é que isto diz do país e das pessoas? Do Benfica, do futebol e dos adeptos? Do mundo e dos tempos? Escreveu-se muito sobre isto.
Há uns dias também se escreveu sobre as raparigas que bateram no miúdo e sobre a menina de 12 anos violada pelo padrasto que fez um aborto. Mas já passou. Não há tempo para tudo. Já não se escreve muito sobre isto.
É moda. É moda assistir, partilhar e explorar cenas das misérias humanas e escrever prosas filosóficas sobre cada uma e sobre o facto de assistirmos, partilharmos e explorarmos essa mesma miséria humana. Somos assim. Somos especialistas emocionais com razão e noção de justiça.
E isto quer dizer o quê? Quer dizer que cada caso deixou de ser um caso, que os casos explicam multidões. Explicam que as mães não protegem os filhos, que os polícias batem nas pessoas com bastões de aço e que as pessoas roubam. Que o mundo está perdido, que os jovens já não são o que eram. Tudo isto quer dizer que precisamos de casos para ter opinião. Que a nossa moral é empírica, relativa e vai-se formando conforme os casos. Sem casos, vivíamos na solidão do pensamento abstracto que dita princípios, valores e religiões. Sem casos, não teríamos princípios ou valores, e sem a televisão ou as redes sociais seria mesmo impossível.
Mas esta semana foi boa: esta semana não gostámos do polícia mau, somos o polícia bom da mesma forma que já fomos Charlie e temos um dilema moral: não temos a certeza se gostamos da mãe que preferia que o filho fosse a vítima e não o assassino. Para a semana há mais.

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