Quando é que ela pode entrar?

Maria João Avillez
Observador 15/5/2015, 18:57

Não é exclusivo nosso, nem patologia apenas nacional. O “mundo” é de esquerda e as agendas mediáticas, como vasos comunicantes, é dele que se alimentam enquanto lhe fornecem o oxigénio de que precisa

1 Portas trancadas, ar rarefeito e um mandamento, o mesmo desde há quarenta anos, de resto: “a direita não entra”. É verdade: quatro décadas após Abril de 74, ela ainda não dispõe de passaporte. Terá algum dia? Não se sabe. A quase automática rejeição que provoca está de tal modo instalada nalguns meios -os bem pensantes, as inteligentsias, os “cultos”, a intelectualidade, os partidos de esquerda, a universidade, os sindicatos, os que ocupam o espaço público, que o facto se tornou numa anormalidade inteiramente normal.
Há que pedir licença para existir no mapa nacional. Um mapa obviamente expurgado de uma parte não dispicienda do seu território já que, bem entendido e digamo-lo gentilmente, a direita está proibida de existir: não pode ganhar eleições, não pode governar e muito menos pode fazê-lo bem; (“não sabe”); não pode decidir (“não tem critério”); nem escolher (fá-lo-ia sempre “mal”); não pode ser culta, (a esquerda tem o exclusivo); não pode ter ideias, (são habitualmente “nocivas”); não pode exibir-se, ter brilho, votos ou seguidores; não pode cuidar dos “pobres” (se governar “ a pensar neles” está a fazer batota ou então a explorá-los); não pode ganhar prémios, ter biografados, contar com sindicalistas, escritores ou “artistas” (não tem “legitimidade”); etc. Poderia ir por aí fora, quem sabe até ao infinito, abrindo as várias folhas de um leque que alguém que exista ou respire politicamente à direita do PS não deveria poder permitir-se abrir.
Estou a ser intencionalmente simplista porque é justamente disto mesmo que se trata entre nós: da desarmante simplicidade com que se foi fazendo desta subservão da própria democracia uma espécie de inviolável constituição.
Não é exclusivo nosso, nem patologia apenas nacional, já se sabe. O “mundo” é de esquerda e as agendas mediáticas, como nos vasos comunicantes, é dele que se alimentam enquanto lhe fornecem o oxigénio de que precisa. Mas espanta que se admita com esta placidez que metade do país é como se fosse um intruso na outra metade.
Uma espécie de rotina mas de tal modo já assimilada que nem se repara nela. Vai-se vivendo. Só isso explica que se tenha podido escrever com naturalidade que Passos Coelho não podia ter usado um cravo na lapela no dia 25 de Abril porque os comunistas não deixavam, a ninguém incomodando de resto o extraordinário argumento para o veto do cravo. Que se tenha clamado nos écrans televisivos que a coligação não tinha o direito de “ocupar” esse dia histórico com o anúncio do seu segundo casamento politico, porque a data lhe é estranha; que tenhamos ouvido manifestações de comiseração face a dispensabilidade de um livro que supostamente conta a história pessoal do primeiro-ministro. Um gesto sem novidade e até vulgar nas democracias justamente em épocas eleitorais. Nada de muito excitante. Mas revelador daquilo que a esquerda pensa, a sério, ser uma intromissão (indevida) no perímetro dos biografáveis, um alvará de resto só por ela concedido e que obviamente o primeiro-ministro não merece. Apesar de convidada para apresentar o livro -convite que declinei por não conhecer a autora – não o vi ainda, ignorando sabendo se é “bom” ou “mau”, mas em face da generalizada e bem pensante “indignação” ficou claro que a sua qualidade passou velozmente para segundo plano.
Há aliás mais modelos de intromissões indesejadas que não merecem ficar soterrados no esquecimento: uma reunião internacional promovida recentemente pelo secretário de Estado da Cultura que juntou algumas pessoas para pensar em voz alta os caminhos da cultura, foi por uns condenada ao silêncio, por outros acidamente vilipendiada.
A iniciativa desenvolveu-se por entre concorridos debates e paineis que, em simultâneo, ocorriam em seis salas do Centro Cultural de Belém, mas o que foi colocado na montra mediática foi que o chefe do Governo “falara para uma sala onde apenas se sentavam duzentas pessoas” (cito de memória). Também não me lembro de ter lido uma linha interessante (ou mesmo desinteressante) sobre a intervenção de oradores que nunca poderiam ser confundidos com o governo (Mega Ferreira, Jorge Gaspar, Guilherme Oliveira Martins, Augusto Mateus, por exemplo); ou lido um parágrafo sobre as conclusões deste fórum que durante três dias ocupou o CCB e mais outros cinco, em diversas salas do país. Retive porém a prosa prolixa sobre o custo do evento e os (sulfúricos) estados de alma dos jornalistas contra a incursão do Governo de direita por um dos mais sagrados dos territórios da esquerda. (O qual Governo é agora ferozmente acusado de “eleitoralismo” por inaugurar o novo Museu dos Coches na data em que há cerca de um ano anunciou que o faria ou pela obra abrir sem a “coleção completa”. É como nas telenovelas: um episódio por dia)
Infelizmente os episódios são incompatíveis com a informação mas não é ela que escasseia, são os intermediários: se um governante é de fora da área da esquerda não tem sombra de garantia de ser ouvido quando nos “conta”os seus projectos ou o que anda a fazer com o dinheiro público, devendo porem fazer o maior caso das opiniões (e recomendações) dos jornalistas do templo. Pergunta-se: onde está a informação digna desse nome? E o bom uso das regras editorais? E a ética da profissão? E a liberdade de informação? Não está.
Haveria nestes exemplos muito pano para mangas, mas o que interessará porventura é sublinhar como eles são geradores de outros casos e exemplos, numa infindável e quase obsessiva cadeia de estranhos comportamentos. Veja-se o universo da comunicação social, onde foram poucos os que genuinamente se incomodaram com o SMS de António Costa a um responsável do Expresso. Do sindicato aos editores, passando pelas ERCs deste mundo mas sobretudo pelos próprios jornalistas, a tibieza substituiu com vantagem uma rejeição que deveria ter sido imediata e geral e não foi.
Sim, repito, nada disto é novo nem um exclusivo nacional, como as queijadas de Sintra. Estamos bem lembrados como por muito menos que um SMS deste calibre socialista, todos os governantes de direita têm vindo a ser criteriosamente triturados ao longo de diversos mandatos políticos. Mas isto que escrevo, desenganem-se, não é de todo uma lamúria, é uma gelada constatação – o que é bem pior, de resto, já que é redigida aliás sem exagero ou parcialidade. Para quê? Para modestamente lembrar que convém que a rotina deste estado de coisas não nos enleie na sua aparente irredutabilidade; nem nos faça desistir de abrir uma estrada dupla numa via há muito de sentido único. Nunca é demais avisar as navegações sobretudo se os ventos politicos não se recomendam. Anda-se há quase meio século a roer um osso cada vez mais duro.
2 Como o falhanço das sondagens inglesas foi particularmente estridente, assumiu foros de quase estreia mundial. Erradamente: com Major sucedeu o mesmíssimo, em 1992, e noutras latitudes, idem. Não é de hoje que as pessoas se escondem das sondagens. Lembro-me do que ouvi nas épocas de Cavaco. E recordo Mário Soares nas vésperas das legislativas onde o mesmo Cavaco renovaria – aumentando-a – a sua segunda maioria absoluta a passear no belo terraço do Palácio de Belém onde com solicitude me aconselhava a que tivesse juízo: o PSD ia “evidentemente” perder as eleições e o PS ganhá-las, como “evidentemente” merecia.
Estive em Londres uma semana antes das eleições. Saí no preciso dia em que (finalmente) a campanha deu um salto, a tensão entrou em cena e Cameron arregaçou as mangas, inventando um suplemento de alma. Intuía-se que alguma coisa acelerava. Acelerou a certeza de que, na dúvida, o pais votaria conservador. E dizer “dúvida” era, naquelas circunstâncias, dizer o mínimo para classificar o que seria o consulado do Milliband “mau”.
Seja como for, não há favas contadas: a estrada é ardilosa, o povo está mais resignado que feliz, os bons resultados económicos que deram e roubaram vitórias nas eleições de dia 7, sendo vitais, não são tudo e o novo Governo parece no mínimo um pouco bizarro. Mas, last but not the least, a ideia do referendo europeu prometido por David Cameron não pode ser mais fatídica: que surgirá dali se as razões que ditaram a oportunidade política da convocação do referendo serão sempre menores que os trabalhos de Hércules que ele originará, no país e na própria UE?
Isto dito, começou a correria da “transposição para cá” dos resultados eleitorais de lá. Com o erro (e como justificá-lo?) de ser António Costa a abrir a correria, ao remeter a vitória conservadora para a ausência de uma política de austeridade na Grã Bretanha. Quando se sabe que a campanha dos Trabalhistas foi sobretudo baseada nos “malefícios” e nas “maldades” da austeridade, ignora-se com que atenção e interesse o líder socialista acompanhou a campanha do seu camarada Ed Milliband. Talvez com a mesma com que seguiu o Pasok na Grécia, isto é, com nenhuma atenção: estamos bem lembrados que o fervor socialista teve como único destinatário o então efervescente Syriza.
A verdade é que já lá vão três recentes derrotas politicas socialistas que embora nada una entre si – Grécia, Madeira e Grã Bretanha – embaciam o brilho de que o PS tanto necessita e reduzem-lhe a velocidade. Qualquer dia é só em marcha-atrás.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António