“The economy, stupid”

Mário Pinto | Observador 23/5/2015

Sempre me lembro de mim, ao longo da vida inteira, a pedir à economia para dar mais ao social. E não é que, desde há algum tempo, estou a reconhecer que o social deve conceder mais ânimo ao económico?
  1. Antes de iniciar as reflexões seguintes, permita-se-me que me lamente. Sempre me lembro de mim, ao longo de uma vida inteira, a pedir à economia do nosso País para dar mais ao social. E não é que, desde há algum tempo, me encontro a reconhecer o inverso: isto é, que o social deve conceder mais ânimo ao económico? Foi preciso uma revolução para reequilibrar a favor do social. Será preciso agora outra revolução para reequilibrar a favor da economia? Não aprendemos nada com a história?
  2. É bem conhecida a legenda interpelativa, um tanto malcriada, que escolhemos para título, entre aspas, deste artigo. Ela foi inventada por James Carville, director de campanha eleitoral do democrata Bill Clinton contra o republicano George H. W. Bush, para a Presidência dos Estados Unidos — mensagem que terá contribuído muito para a derrota do republicano. Curiosamente, se a repetirmos no nosso contexto político, europeu e português, ela soará, ao contrário do que sucedeu na América, talvez mais como uma voz de direita contra a política de esquerda. Mas é errado, muito errado, considerar esta chamada de atenção para a economia como uma posição partidária, da direita contra a esquerda, ou da esquerda contra a direita. Uma economia próspera não é declarada incompatível por nenhum programa partidário. E é verdade que, na nossa esquerda, quer o Partido Socialista, quer o Partido Comunista, insistem constantemente na necessidade de incentivar a economia — presumivelmente por via de políticas keynesianas, o que não desvaloriza a questão da economia, embora resistindo na primazia do Estado. E seria impensável que a direita não concordasse com a necessidade de dar importância à economia.
  3. Assim sendo, é motivo de grande perplexidade o facto evidente de que, em toda esta grave crise financeira, económica e por fim social em que entrámos, a questão da economia não mereça, entre nós, a importância «política» que merece. Toda a gente agora discute, não a questão da economia (designadamente da produtividade e da competitividade); mas a questão política da «reforma do Estado» — centrada nos poderes do Presidente, na dimensão da Assembleia, no regime de governo, no Tribunal Constitucional, na reforma do regime eleitoral e partidário, na revisão da Constituição, e assim por diante, matérias sobretudo político-institucionais.
    Sem desmerecer a importância destas questões, a verdade é que: se a economia fosse liberta das excessivas cargas burocráticas e fiscais que a oneram; se o mercado de trabalho não fosse mais rígido do que em qualquer outro país da Europa; se a acção do próprio Estado na economia privada não fosse tão prejudicial, quer pela concorrência desleal que lhe faz, quer pela regulação burocratizante, quer pela distorção das suas intervenções que umas vezes são pela subsidiação viciosa e outras pela cumplicidade ou parceria; se o sindicalismo burocrático do funcionalismo público não fosse uma corporativização do Estado e, por via do Estado, uma corporativização de parte da economia; para não falar da corrupção que todos estes mecanismos introduzem no mercado interno e na nossa relação económica com o exterior; teríamos certamente uma economia muito mais próspera, apesar da Constituição e do sistema institucional de Governo que temos.
  4. Dentro da famigerada «reforma do Estado», que quase toda a gente defende, a reforma do «Estado  social» é contudo muito mais urgente do que a reforma do «Estado Democrático» (o «Estado de Direito» não tem estado felizmente em causa) — porque a reforma do Estado social é mais «económica» (reforma da sua economicidade) e a reforma do Estado Democrático é mais «política». Mas toda a gente prefere falar da reforma institucional-política, e não da reforma social-económica. Há portanto tabus no nosso reformismo.
  5. Ora, com tabus não se resolvem crises. Ressalvando a legítima base da vida social e do Estado, que é: o postulado da eminente dignidade da pessoa humana, desdobrado nos direitos pessoais fundamentais humanos correspondentes (digamos: o Estado de Direito), tudo o mais «devia ser revisto», e bem revisto — o que não implica necessariamente que tudo teria de ser reformado ou modificado. Mas estamos muito longe disso.
    Quem se atreve, por exemplo, a rever o regime da greve, interpretando devidamente o nº 2 do art. 57º da Constituição, que diz que «compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito»? Porque o direito de greve, assim definido constitucionalmente, não é um direito de soberania paralelo ao do Estado, nem legitimamente prevalece cega e automaticamente sobre todos e quaisquer outros direitos e interesses legítimos que possa prejudicar. Por definição e sem contestação, a greve política não é juridicamente igual à greve profissional. Na primeira greve que teve lugar após o golpe militar revolucionário do 25 de Abril, o PCP opôs-se vigorosamente invocando o princípio de que a arma da greve é um último recurso. Hoje, quem se recorda de um tal princípio, quando os sindicatos, por conveniência própria, banalizam a greve por motivos políticos?
  6. Quem se atreve a criticar o monopólio estatal da escola pública, a benefício da desburocratização e do menor custo deste importante serviço público? Quem aceita rever o universalismo obrigatório do Serviço Nacional de Saúde? Manifestamente teórico? Por que não manter a obrigatoriedade dos seguros sociais, e a sua garantia pelo Estado, mas flexibilizando as suas formas e abrindo algum espaço de escolha e de comparticipação aos cidadãos? Porque é que o Estado há-de constantemente desejar substituir a sociedade civil, lá onde ela funciona bem, como nas redes educativas e de apoio social, sempre aumentando as redes estatais?
    Quem, ao menos, abre a discussão (como se tem vindo a fazer ultimamente, e mais uma vez, em Itália e em França), sobre o mercado de trabalho e a chamada flexi-segurança? Como já se fez em outros países democráticos, como a Itália, quem se atreve a sindicar a democraticidade dos sindicatos, que são constitucionalmente obrigados à democraticidade interna? E quem se atreve a sindicar a sua representatividade efectiva? Uma vez que se lhes reconhecem importantes privilégios? Porque é que não se há-de abrir maior espaço às comissões de trabalhadores, para a co-gestão e a contratação colectiva nas empresas? Permitindo uma renovação do sindicalismo, como temos boas provas em casos exemplares, como o da Auto-Europa?
    Quem quer cuidadosamente rever a subsidiação de Estado, que é uma fonte de burocratização, de cumplicidade, de viciosa subsídio-dependência. Incluindo nas funções das autarquias? E só é possível à custa dos contribuintes ou da solidariedade europeia — duas fontes que se estão a exaurir.
  7. Será um escândalo rever uma concepção de Estado social que não distingue entre o que, por razão de subsidiariedade, deve ser função do Estado; e o que, igualmente por razão de subsidiariedade, o Estado não deve fazer? E acha que o Estado decide arbitrariamente o que deve e o que não deve fazer? Isto é: defendendo um Estado arbitrário, em vez de um Estado subsidiário?
    Há décadas que se escreve isto, em todos os países e na própria União Europeia. Entretanto, o que se passa em Portugal é que toda a gente (parece que até incluindo os líderes dos empresários) quer mais Estado e mais funções de Estado: tipicamente porque os governados, na sua maioria, esperam receber mais do que pagar de impostos; e porque os governantes é no Estado cada vez maior que têm mais poder e mais empregos para os partidários.
  8. O Estado providencialista está arruinando as economias, nos países onde, como no nosso, se conjuga um grande progresso social com um grande atraso da economia. Foi publicado recentemente que Portugal é dos países europeus que menos cresceu economicamente, desde há muitos anos. É preciso ter a lucidez de não apenas pensar, mas além disso praticar, na linha de um progresso que tem de ser sustentável, dialecticamente no social e no económico. O social e o económico, ou crescem em justa aliança, ou um deles sufoca o outro. A inimizade entre o social e o económico é uma intoxicação primária de que necessitamos vitalmente de nos libertar.
  9. «Horribile dictu»: ao menos lembremo-nos das teses marxistas: «O direito nunca pode ser mais elevado do que o estado económico e o grau de civilização que lhe corresponde…». «… só então o limitado horizonte do direito burguês poderá ser definitivamente ultrapassado e a sociedade poderá escrever nas suas bandeiras: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!».
Ex-deputado à Assembleia Constituinte, professor jubilado da Universidade Católica

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