Os vários PS

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014.05.26

Hoje é bom dia para considerar a situação política. O debate anda tão polarizado que uma análise serena tem sido quase impossível, todos interpretando tudo facciosamente; mas o rescaldo das eleições talvez permita um momento de lucidez. A situação merece estudo, pois inclui um mistério.
Portugal sai lentamente de um período económico muito difícil, de forte sofrimento social. Não espanta que os partidos do poder sejam punidos pelas dificuldades. Existe naturalmente um grande descontentamento contra o Governo, que teve de tomar medidas duras, falhou reformas importantes e por vezes perdeu até o rumo claro e sólido. Isso conduz, sem surpresa, a uma subida de atitudes radicais de protesto, com os pequenos partidos extremos capitalizando o descontentamento.
Até aqui tudo normal. Mas isso tem pouco significado político, porque essas forças nunca estiveram, nem se prevê que venham a estar, no poder. A questão interessante é a atitude da Oposição moderada, única alternativa credível de governo. E essa está surpreendentemente a fazer o contrário do que devia.
Em termos eleitorais, o Partido Socialista apenas tinha de esperar. Ouvir as queixas, prometer alívio, criticar erros e dificuldades, mas manter as opções abertas, pois em breve será ele a enfrentar os mesmos problemas. Entretanto conservar uma atitude de equilíbrio, serenidade e sentido de Estado, enquanto a maioria sofre os custos do ajustamento e os pequenos partidos fazem barulho irresponsável.
O mistério é que o PS, pilar da política portuguesa, adopte uma posição de radicalismo e contestação igual aos mais extremistas. Ao contrário das oposições homólogas europeias, recusa a necessidade de austeridade, alinha com os partidos radicais e nega o programa de ajustamento que ele mesmo negociou. Assim assusta mercados, empresas e investidores.
É normal que condene as políticas do Executivo, mas não que abandone um diagnóstico sólido e fundamentado dos problemas. Nunca admitiu as suas responsabilidade na crise, apesar de ter estado no poder quase 13 dos 15 anos anteriores ao colapso de 2011, e nega a gravidade da situação, atribuindo todos os males aos erros da maioria e da troika, o que é miopia, senão autismo.
Agora o "Contrato de Confiança", base do programa de Governo apresentado a 17 de Maio, acrescenta fantasia ao radicalismo. Com boas intenções, generalidades e passes de mágica, promete inverter tudo o que foi feito, e trata os problemas muito graves com soluções tolas como "Renegociar a Dívida Pública" (n.º 70), o que sairia bem caro. Quando voltar ao poder, as opções radicais serão todas invertidas e as promessas vagas perseguirão o partido.
A que se deve a insólita inconsciência? A situação não é típica, pois desde 1974 o PS nunca teve um discurso tão radical. Também não é dificuldade em entender emergências financeiras: há trinta anos foram os governos PS a aplicar fortíssima austeridade, salvando-nos da ruptura. António José Seguro não é tonto nem irresponsável. Ele encontra-se numa das situações políticas mais delicadas da democracia. O seu populismo tresloucado não vem de falha, má fé ou ignorância, mas de um terrível equilíbrio que tem de suportar.
Ao assumir funções em 2011 viu-se na posição insólita de liderar um partido divido em facções e que, apesar de derrotado após longo desgaste, ainda era dominado pelas forças do antecessor. Nunca foi possível ao novo líder cortar com o passado, como lhe convinha. Apesar de pessoalmente desligado do consulado Sócrates, foi obrigado a defendê-lo por táctica interna, o que o forçou à fábula. Pior, o predecessor, em vez de sair de cena graciosamente, regressou logo que possível, para ficar a assombrar o partido. Cada vez que José Sócrates fala, Seguro desce e em geral o Governo ganha.
O radicalismo dos discursos e tolice do programa são meros sintomas da doença. A raiz profunda é o feudalismo das facções, mais distantes entre si que de forças externas. Uma grande incerteza que pesa sobre Portugal é a multiplicidade de vários PS.

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