O Zé, a Maria e Benidorm


Saragoça da Matta, ionline 2014.05.16

A fartura acabara. Já ninguém lhes adiantava um centavo. Nem a eles nem ao país!
O Zé e a Maria eram um casal normal. Ela, cabeleireira, passava os dias no salão da patroa a arranjar cabelos; ele, taxista em carro alheio, labutava 8 horas ao dia pelas ruas da capital, entremeando o trabalho com copos de três, ovos cozidos e cigarros meio aproveitados pela entrada de clientes inesperados. A Maria, que até gostaria de ter estudado, esforçava-se ainda por aprender manicure com uma colega. As noites passava-as agarrada ao ferro, embalada pelas novelas da TV. Já ao Zé sempre lhe bastou o ciclo preparatório incompleto... "estudar para quê?". O país sempre esteve cheio de "doutores" desempregados. O melhor uso a dar aos serões era entornar uns bagaços com os vizinhos da União e Capricho lá do bairro, em vivos debates sobre futebóis ou bravatas sobre a vivenda que construíra lá na terra.
Vivia lá em casa, embora pouco o vissem, o filho do casal, o Pedro. Estudava, há mais anos do que tinham memória, alguma coisa "das informáticas". O estudo nunca acabava e o Pedro, trabalhar, nem pó! Também, o que os papás ganhavam chegava para lhe continuar a pagar os maços de SG e diletar pelas vielas do bairro. Era o orgulho dos pais.
A vida corria-lhes de feição. Ao fim e ao cabo sentiam-se classe média. Os estudos do Pedro saíam-lhes de graça, o posto médico e os hospitais também, os avós do Pedro recebiam pensões para que nunca tinham descontado e os irmãos desempregados da Maria recebiam rendimento social de inserção... apesar de trabalharem como pintores, sem recibo.
O país estava tão bem que Lisboa ia ter TGV, construir-se-ia uma terceira ponte no Tejo e Portugal reluzia com centros culturais, teatros, gimnodesportivos, piscinas e marinas. Enfim... um sonho de que nem o Zé, nem a Maria, nem o Pedro, alguma vez se tinham acercado! Bastavam-lhes as romarias lá da terra, o Rock in Rio e os festivais de Verão.
Um dia tudo mudou. Portugal quase faliu e até a Maria foi despedida. A arca frigorífica que dava para uma família de doze, o plasma que enfeitava a sala sobre um naperon de crochet, o Seat comprado com crédito daquele banco que também quase faliu, tudo foi levado por agentes de execução. Só com o salário do Zé, a família deixou até de fazer as férias de Verão em Armação de Pêra. O Zé bem que tentou convencer o patrão a deixá-lo fazer uns turnos extra... mas o patrão não foi na conversa. Se até então o Zé sempre recusara horas extraordinárias, quando faziam falta, então agora sem clientes é que queria trabalhar?
O Zé e a Maria não percebiam! O que acontecera à vida boa? Às promessas de progresso feitas pelos políticos nas campanhas? A explicação chegou--lhes numa das raras vezes em que ouviram mesmo um "doutor" a falar na TV: eles, como o país, tinham passado vinte anos a viver com dinheiro que só ganhariam nos anos seguintes.
A fartura acabara. Já ninguém lhes adiantava um centavo. Nem a eles nem ao país!
Mas uma coisa não perceberam: se eles deixaram de gastar porque não têm, como é que o país depois da falência e dos "cortes" está a gastar ainda mais do que gastava antes?
O Zé e a Maria também querem fazer o mesmo... além do Seat de volta, querem a arca e o plasma. Nessa noite já sonharam em ir de férias para Benidorm...

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