O espectro dos anos trinta
DN 2014.05.12 JOÃO CÉSAR DAS NEVES
O descontentamento e o extremismo alastram em todo o Ocidente, a par da perda de confiança na classe política. A polarização partidária norte--americana é máxima e na Europa sobem os movimentos anticomunitários. Até no pacato Portugal, responsáveis sérios fazem propostas incendiárias. O radicalismo nunca foi tão grande desde os tempos nazis. Não falta sequer uma crise financeira global, após 2008, turbulências regionais, como na Primavera Árabe, e agora um autocrata com ambições territoriais. Ressurge o espectro terrível dos anos 1930.
Estas análises, tão abrangentes, perdem o mais importante. Porque vivemos também o tempo que regista a maior ganho de bem-estar e redução de pobreza da história da humanidade. Segundo o Banco Mundial, a população a viver com menos de dois dólares por dia desceu de 65% do planeta em 1990, para 43% em 2008, último ano disponível. Na China, essa taxa de pobreza caiu nesses 18 anos, de uns esmagadores 85% para 30%, e até na África a sul do Sara, a zona mais carenciada do globo, desceu de 76% para 69%. Desde 2005, pela primeira vez na história, menos de metade do mundo é pobre. Finalmente, a Terra começa a ser dominada pela classe média. Os impactos disto no bem-estar são enormes. A mortalidade infantil desceu no mundo de 62 mortes por mil nascimentos, em 1990, para 35 em 2012, e na China de 42 para 12; mas a maior descida foi na África subsariana, de 106 para uns ainda terríveis 64. Todos os números apontam para um espantoso progresso, sobretudo nas zonas miseráveis.
As causas são evidentes. Nos últimos 25 anos, o mundo abriu-se na famosa globalização, terminando clivagens seculares entre colonizadores e colonizados, esferas soviética e ocidental. Juntando a isso os avanços tecnológicos nas comunicações e energia e a redução dos custos de capital, os ganhos nas zonas pobres são incomparáveis com qualquer quarto de século anterior. Começa a falar-se no fim da velha miséria endémica (The End of Poverty, de Jefrey Sachs, 2005).
O contraste entre a revolta no Ocidente e as melhorias no Sul e no Oriente mostra que o mundo é muito grande, a realidade muito complexa e variada. Por isso o que dizemos nas análises não é mentira, mas o inverso também é verdade. É possível, com fundamento e credibilidade, traçar um quadro negro e ameaçador ou uma descrição esperançosa e entusiástica da mesma situação mundial. E ambos são válidos. Esta diversidade abre a porta a muitas manipulações e discussões, que ouvimos a cada passo.
Estes fenómenos, aparentemente opostos, mostram-se não apenas simultâneos, mas intensamente ligados. O avanço das zonas pobres, junto com mudanças técnicas, perturbaram a economia do Ocidente. Muitos sectores europeus e americanos viram-se desqualificados pelas novas tecnologias ou substituídos pela concorrência de regiões antes na miséria. Daí as falências e o desemprego que nos assolam. A reacção natural, de amaciar as dificuldades com dívida, rebentou inevitavelmente na bolha imobiliária americana e no descontrole orçamental europeu. Estes movimentos chegam para justificar a crise financeira, ânsias de alforria regionais e perturbações fronteiriças entre blocos.
O mundo vive grandes modificações, hoje como nos anos trinta. Mas o que então gerou a catástrofe não foram as mudanças, mas a raiva. O extremismo não resulta dos males da evolução mas da fúria contra ódios de estimação a quem atribuímos as culpas. Aquilo que nos atinge são mudanças globais, transformações tecnológicas, evoluções socioeconómicas. Não são conspirações, maldades, roubos de capitalistas ou comunistas, multinacionais ou burocratas, americanos ou judeus, parasitas ou corruptos. Eles são influentes mas, como nós, sofrem algo que não controlam.
O mundo está a mudar. Não vale a pena fugir ou ignorar e são normais sonhos e medos, colaborações e desconfianças. Estamos mais próximos de um ideal utópico ou um conflito apocalíptico. A diferença entre eles está na raiva. Aquela mesma raiva que tantos alimentam no Ocidente, como nos anos trinta.
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