O Papa e a Igreja Portuguesa
P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA
Voz da Verdade, 2014.05.18 *
Ainda era presidente da República um militar do antigo regime e circulavam pelo país inúmeras anedotas sobre a sua pessoa. Uma senhora, tendo ouvido os filhos gracejarem a esse propósito, pediu-lhes alguma contenção, tendo em conta que o visado … já tinha sido uma pessoa importante! Não quero fazer nenhuma comparação, não só porque todas são odiosas, mas também porque o Dr. Mário Soares, a quem a democracia e a liberdade tanto devem, merece algum respeito, apesar das suas infelizes declarações no Público de 30-11-2013.
Com a descontracção que o caracteriza, sobretudo em questões religiosas, o histórico líder socialista cometeu algumas imprecisões, tais como designar o Papa Francisco por "Santo Papa", em vez do curial "Santo Padre". Também incorreu em contradição ao afirmar que Francisco "representa no mundo de hoje um dos maiores papas de todos os tempos". Com efeito, se é "no mundo de hoje", não é "de todos os tempos"; se, pelo contrário, é "de todos os tempos", não é só no "mundo de hoje" …
Fez bem em salientar que o Papa Francisco "ama o próximo (…), sobretudo os mais pobres e os mais desfavorecidos", mas depois, contraditoriamente, só lhe reconheceu ódios. Segundo Mário Soares, Francisco "detesta o capitalismo selvagem" e também "detesta a austeridade, imposta pela senhora Merkel, que ganhou as eleições", seguramente por ignorância do eleitorado alemão. Pelos vistos, o que o Dr. Soares quereria era colar à batina do Santo Padre o crachá da sua tão querida indignação, cujo direito institucionalizou.
Parece também querer reinventar a História, ao dizer que a Igreja portuguesa foi colonialista e próxima da ditadura, esquecendo que foram missionários católicos os primeiros a denunciar, internacionalmente, alguns excessos coloniais e que o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, não foi o único católico a ser perseguido pelo anterior regime. Aliás, a primeira república, que é tão grata ao ex-presidente, era profundamente colonialista, tendo por isso arrastado Portugal para a primeira Guerra mundial; tão anticlerical que desterrou todos os bispos portugueses; e de tal forma antidemocrática que, de facto, restringiu o direito de voto.
Duvido que, como afirmou Soares, a Igreja portuguesa se tenha tornado aberta e progressista "graças à intervenção do PS". Estou certo, no entanto, que foi graças à Igreja portuguesa e à reacção de muitos católicos ao PREC, sobretudo no norte do país, que hoje existe em Portugal um regime democrático, sem o qual o PS decerto não existiria. Tal como foi também a Igreja a principal força de paz nos países de expressão portuguesa, mergulhados em sangrentas guerras civis depois da desastrosa descolonização, que o Dr. Mário Soares tão bem conhece.
Mais inaceitável é, contudo, a afirmação de que a Igreja portuguesa e, em particular, o Senhor Patriarca de Lisboa, não estão unidos ao Santo Padre, ou não fazem eco aos seus ensinamentos. O Dr. Soares, que se ufanou de o Papa ter confirmado, dois dias depois, o seu apocalíptico discurso, esqueceu que o Patriarca de Lisboa, que sempre foi o que é e que nunca se fez passar por mais ninguém, sempre esteve e está em total sintonia com o magistério deste pontífice e o dos seus predecessores. O mesmo já não se pode no entanto dizer do referido socialista que, certamente, não subscreve a grande maioria dos ensinamentos da Igreja e, portanto, do Papa Francisco, por mais que nesse artigo, por razões que só Deus sabe, o tenha incensado publicamente.
Ficaria bem, ao Dr. Mário Soares, desagravar o Senhor Patriarca e os católicos portugueses. À conta do seu passado, o Dr. Soares é certamente uma figura histórica que, embora controversa e polémica, muitos portugueses, também cristãos, consideram. Mas, se o que o ex-presidente pretende é politizar e dividir a Igreja, opondo a de Lisboa à universal, ou separando o Senhor Patriarca do seu rebanho, deixe-me que, com todo o respeito, também eu lhe diga: - Olhe que não, Senhor Doutor, olhe que não!
*Texto enviado para o Público em Dezembro de 2013 e, até à data, não publicado.
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