A Europa que é

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014.05.19

É tão fácil dizer mal da Europa! As críticas são muitas, contraditórias, mas sempre concordes na severa censura: a Europa corre mal. Todos vivemos na Europa e da Europa, e muito do que somos e temos dela recebemos. Apesar disso, a gratidão é pouca e é grave o que lhe reprovamos.Os socialistas consideram-na capitalista e os liberais dirigista.
Cada oposto vê-a do lado oposto. Os membros do Sul acusam-na de injustiça e opressão e os do Norte de esbanjadora e parasita. Os americanos desprezam-na como decadente e preguiçosa, os africanos acham-na colonialista e pedante. No concerto das nações surge como caduca, enfatuada, sempre em discussão consigo e perdida em ideais. Todas as críticas são verdadeiras e justas. A consequência é que, dentro ou fora, a Europa não tem defensores ou partidários, quanto mais amigos.Pior, os próprios cidadãos realmente ignoram-na.
Nas eleições de domingo, manifestação suprema do espírito europeu, a esmagadora maioria dos eleitores vai simplesmente abster-se por puro desinteresse. Os poucos que a tomam a sério irão votar, não com a cabeça, nem sequer com o coração, mas com as tripas. Por isso o Parlamento Europeu, órgão já com poderes consideráveis, que realmente afectam fortemente a nossa vida, tem, face aos parlamentos nacionais, uma percentagem elevadíssima de extremistas, idealistas ou patetas. Essa é uma das razões para as críticas referidas, que os comentadores nunca atribuem ao próprio descuido, mas assacam aos governantes, sem notar que a escolha deles é nossa.O mais surpreendente é que a generalidade dos observadores não considere a extraordinária realidade da União Europeia, projecto único nos anais da humanidade que há mais de 60 anos tenta, e avança, num desígnio histórico incomparável.
Que países vizinhos, inimigos seculares, chacinando-se em permanentes conflitos, se unam num magno esforço de partilha de soberania é uma ideia que desafia toda a lógica social e política. Que esse projecto tão ambicioso tenha gerado uma prosperidade, liberdade e progresso dos mais elevados de sempre, recuperando rapidamente do maior dos desastres bélicos, ainda mais o distingue. A maior coroa de glória é que, além disso, os seus membros não tenham medo de abrir a experiência a outros, passando, dos seis iniciais, para os actuais 28. E que o façam confiando plenos direitos aos recém-chegados, sem privilégios para os fundadores. Poucas organizações humanas alguma vez tentaram reger-se por princípios tão dignos e magníficos.Tudo isto está simplesmente omisso na maior parte das discussões sobre a União. A única hipótese de compreender a grandeza do projecto europeu, além das liturgias oficiais comunitárias, a que ninguém dá atenção fora dos círculos diplomáticos, está na involuntária homenagem que os países externos lhe prestam. A verdade é que a grande maioria dos vizinhos gostaria de aderir, e os países longínquos pretendem copiar.
O mundo está cheio de multilateralismos, cooperações internacionais, comunidades de Estados e organizações intergovernamentais. A tentativa de imitação é, em si mesma, um tributo inconsciente. Mas as enormes dificuldades que essas outras experiências têm sofrido revelam em contraluz o espantoso sucesso europeu. A União é, apesar dos seus inúmeros defeitos, o único verdadeiro sucesso de cedência e partilha de soberania e colaboração profunda entre Estados independentes.A Europa das últimas décadas, qualquer que seja o ponto de vista, constitui realmente um enorme êxito político, económico e social. Claro que tem todos os defeitos das suas virtudes e, como todas as realizações humanas, incontáveis falhas, zangas, enganos e misérias.
O projecto tem estado, desde o seu início, sempre à beira do colapso e as crises definitivas foram bastantes mais do que as décadas que já conseguiu acumular. Mas é precisamente no número inesperado dessas décadas que surge o seu principal título de honra. A Europa é, e não era suposto ser. E é apenas por ser que se pode dizer mal dela.

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