Uma velha história
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2012-09-17
Deixem-me contar-vos uma história. É um caso interessante, sobretudo pelo moral que encerra, mas também por nestes anos passar o centenário. Portugal estava com um enorme défice orçamental. Aliás lutava com ele há décadas, sempre com sucessos esparsos, pontuais e efémeros. As medidas iam-se agravando e subia a indignação popular.
O Governo, fraco, tolo, hipócrita, carregava sobre a sociedade com medidas vexatórias, fardos insuportáveis, sucessivos agravos. O povo acreditara quando ele dissera ter a solução, mas afinal ainda fazia pior que os anteriores. Exagerava nos cortes, atentava contra direitos, ultrapassava os limites da decência.A verdade é que, com um défice daqueles, já não havia boas soluções. Só más. Numa época antiga ainda se podia eliminar gorduras, sacrificar supérfluos, castigar abusos, e com isso tapar o buraco. Mas agora já não era possível. Para conseguir resolver a questão era preciso reduzir direitos, exagerar nos cortes, ultrapassar limites. E por isso nós protestávamos.
E como nós protestávamos! Hoje dizem que somos um país pacato, sereno, acomodado, mas nessa altura mostrámos ao mundo que sabíamos protestar, e protestar bem alto. Tínhamos grandes tribunos, agitadores de génio, oradores de talento que empolgavam multidões, incendiavam as ruas, zurziam impiedosamente os boçais governantes com a sua retórica, em nome dos direitos agredidos, dos limites da decência. E felizmente triunfavam sempre.
Debaixo do ataque cerrado o Governo caía, inevitavelmente embrulhado na sua inépcia. Era preciso encontrar um outro, que apresentasse medidas novas, que os tribunos iriam também julgar severamente. Entretanto o défice subia mais um pouco. Porque, é bom não esquecer, protestar não resolve nada. Descarrega os nervos, proclama verdades, defende a justiça, mas não contribui minimamente para tratar a dificuldade. Claro que quando as medidas são más é preciso protestar. Mas que fazer quando só há medidas más? Que fazer quando a situação é grave, as políticas são horríveis, mas o protesto só torna tudo pior?
Aqueles que protestavam sabiam bem de quem era a culpa. Havia muitos inimigos a denunciar. Alguns antigos: o reviralho, monárquicos, padres. Outros recentes: anarquistas, sabotadores, até os boches. Sabíamos bem que a culpa era deles. Mas de facto não era. Claro que existiam e estragavam, mas muito pouco. Nunca teriam força para criar um buraco daqueles. O problema estava nos cidadãos honestos, nos trabalhadores patriotas, que queriam mais do que havia. Se somássemos tudo o que as pessoas comuns achavam ter direito, e calculássemos o total daquilo que os contribuintes consideravam justo pagar, os valores não equilibravam. Mesmo eliminando todos os desperdícios, abusos e roubos, o buraco permanecia. Por isso é que só havia medidas más. Mas cada um defendia o seu interesse. Os governos, que defendiam o país, sucediam-se, como os protestos. E o défice.
Até que aconteceu uma coisa: o povo perdeu a paciência. O horror ao longo caos de tumultos fez com que o povo calasse. Pura e simplesmente deixou de ligar. Vieram os militares. Mas os militares já tinham vindo muitas vezes, sempre vencidos pelos protestos. Desta vez o povo deixou. Os militares, como sempre, fizeram asneira, até chamarem um professor que acertou as contas. Começou a ditadura das finanças.
Sucederam-se as medidas más, muito más. Mas desta vez os protestos foram silenciados e o buraco acabou. É verdade que, além da ditadura das finanças, houve também uma outra, essa geral, que dominou o país e amordaçou as liberdades por 50 anos. Portugal viveu décadas sem os direitos que antes não quis limitar em liberdade. Os tribunos foram expulsos ou viveram na clandestinidade. Não se sabe se vieram a arrepender-se dos ataques que tinham desferido, com tanto sucesso, contra os governos frágeis que tentavam resolver o défice em liberdade.
Esta é uma história muito instrutiva hoje para os países da Europa. Mostra como, ao defender o importante, podemos perder o essencial
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