Toquem os sinos

Miguel Esteves Cardoso
Público 2012-09-29

Começam às oito da manhã, comoito badaladas. Passada meia hora para quem conseguiu premir, nas complicações do ouvido interno, o snooze apropriado para lidar com um carrilhão de sinos, soa um lembrete de sininhos.
Às nove vêm nove das pesadas, capazes de levantar da cama o próprio colchão.
Tão certos estão os sinos da igreja de já não permanecer ninguém na cama que às dez da manhã, a seguir às dez badaladas, toca um melodioso hino litúrgico que felicita as pessoas por estarem acordadas, já a trabalhar, ainda a tomar o pequeno-almoço ou, idealmente, a pensar em ir à missa.
É um jingle que, feliz ou infelizmente (não sabemos, estando ainda em estado de choque), não mais se repetirá ao longo do dia ou da noite. Só quem consegue acordar depois das dez da manhã, por lassidão, devassa vivencial ou droga, não conhece os duvidosos benefícios que oferece.
Desde que viemos viver para Almoçageme que a nossa noção do tempo mudou. Mudou para a verdade. Não é só a igreja que dá as horas: a vista, que mistura o cabo da Roca com a serra de Sintra, convoca os tempos da terra e do mar.
Os sinos da igreja de Almoçageme substituem, com brilho e espiritualíssima eficácia, os relógios de todas as espécies; os telemóveis e os iPhones.
Regressamos assim ao nosso tempo — que é o tempo de todos. Os sinos subjugam-nos. Ensinam-nos. As badaladas substituem, com razão, os nossos relógios imorais. Estamos vivos. Soem os sinos. Oh não. Lá estão eles outra vez.

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