Prefere ter um SNS de topo ou uma estação de televisão pública?
Bruno Faria Lopes, i-online 28 Set 2012
Portugal é de novo agitado pela verdade inconveniente de que há racionamento na saúde. Ainda bem. O debate dá-nos o poder para escrutinar – e fazer escolhas cruciais
“Vivemos numa sociedade em que, independentemente das restrições orçamentais, não é possível em termos de cuidados de saúde todos terem acesso a tudo. Será que mais dois meses de vida, independentemente dessa qualidade de vida, justificam uma terapêutica de 50 mil, 100 mil ou 200 mil euros? Tudo isso tem de ser muito transparente e muito claro, envolvendo todos os interessados”. A frase é do presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Miguel Oliveira da Silva, e gerou – como sempre no debate público em Portugal – uma reacção emocional e acusações de eugenismo. Mas será mesmo assim?
À primeira vista parece estranho que seja o Conselho de Ética a levantar publicamente o problema do racionamento de cuidados de saúde. Mas, na verdade, é de uma questão de ética que estamos a falar, sobretudo quando ninguém no poder político está disposto a assumir que o racionamento de cuidados e saúde já existe em Portugal. Ainda em Junho o secretário de Estado da Saúde, Leal da Costa, garantiu com visível agitação que “não há racionamento implícito no Serviço Nacional de Saúde”, mas sim “uma racionalização cada vez maior no sentido de só fazermos às pessoas aquilo que faz bem às pessoas”. São palavras que devem ter despertado o pobre Orwell na tumba.
O racionamento existe – e, a avaliar pelo que aí vem no orçamento da saúde poderá aumentar. No essencial trata-se de limitar o número de exames e de medicamentos à disposição dos médicos no SNS, no que caminhará cada vez mais para um regime de linhas orientadoras padrão, à semelhança do que existe noutros países europeus (como o Reino Unido). O objectivo é poupar despesa. Para isso, as linhas definem, por exemplo, listas de medicamentos e orientações para tratamento (abandono de terapêuticas muito caras em situações terminais, por exemplo). Casos de pessoas com cancro, sida e artrite reumatóide – doenças muito caras – são alvos preferenciais.
Quando se pensa em racionar cuidados de saúde são muitas as perguntas. Quem define as linhas orientadoras? Se um médico souber de um tratamento melhor, mas que viola a linha orientadora – algo provável no cancro, por exemplo, em que a investigação anda rápido – que liberdade tem para agir num contexto de aperto orçamental violento? E por racionamento estamos a falar só de não gastar 50 mil euros em casos sem esperança ou estamos a travar sistematicamente a entrada de tratamentos inovadores?
Discutir estes problemas em público – tirá-los do manto de falsa oratória política e da gaveta do secretismo – é obrigatório. Em primeiro lugar porque permite escrutinar melhor o processo de decisão sobre “orientações” que, com o objectivo compreensível de evitar o desperdício, envolvem a nossa saúde, seja da frequência com que fazemos exames à delicada opção por um novo tratamento para um cancro. Depois, porque é mais honesto: informa as pessoas sobre o que podem esperar do SNS (dá-lhes poder perante o sistema) e tira dos médicos (formados para fazerem tudo pelos doentes) o peso exclusivo de agirem como gestores hospitalares.
Mas a transparência tem outro grande benefício: permite-nos saber onde está a tolerância da sociedade na hora de racionar cuidados de saúde. A necessidade de poupar na Saúde pública é irrefutável. Mas, no debate sobre Saúde, olhamos sempre para o SNS como uma ilha isolada. Não é. Em 2012 o SNS representará cerca de 10% do total da despesa pública em Portugal.
Há, por isso, muita margem para fazer escolhas. O que queremos? Um serviço de saúde de país avançado ou uma estação de televisão pública? Um óptimo serviço de saúde ou mais pressão política do país para renegociar os juros da dívida? Cortar nos 222 milhões de euros que custam por ano os medicamentos para o cancro ou cortar mais ainda nos apoios às fundações e nas borlas nas PPP? (Estes são dilemas fáceis...) É preciso escolher – e para sermos pressionados para pressionar o poder político a escolher o melhor possível, com cabeça fria e coração quente, precisamos de informação. Não mandemos, por isso, pedras a quente sobre quem tenta trazer estas questões para a luz do dia.
Portugal é de novo agitado pela verdade inconveniente de que há racionamento na saúde. Ainda bem. O debate dá-nos o poder para escrutinar – e fazer escolhas cruciais
“Vivemos numa sociedade em que, independentemente das restrições orçamentais, não é possível em termos de cuidados de saúde todos terem acesso a tudo. Será que mais dois meses de vida, independentemente dessa qualidade de vida, justificam uma terapêutica de 50 mil, 100 mil ou 200 mil euros? Tudo isso tem de ser muito transparente e muito claro, envolvendo todos os interessados”. A frase é do presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Miguel Oliveira da Silva, e gerou – como sempre no debate público em Portugal – uma reacção emocional e acusações de eugenismo. Mas será mesmo assim?
À primeira vista parece estranho que seja o Conselho de Ética a levantar publicamente o problema do racionamento de cuidados de saúde. Mas, na verdade, é de uma questão de ética que estamos a falar, sobretudo quando ninguém no poder político está disposto a assumir que o racionamento de cuidados e saúde já existe em Portugal. Ainda em Junho o secretário de Estado da Saúde, Leal da Costa, garantiu com visível agitação que “não há racionamento implícito no Serviço Nacional de Saúde”, mas sim “uma racionalização cada vez maior no sentido de só fazermos às pessoas aquilo que faz bem às pessoas”. São palavras que devem ter despertado o pobre Orwell na tumba.
O racionamento existe – e, a avaliar pelo que aí vem no orçamento da saúde poderá aumentar. No essencial trata-se de limitar o número de exames e de medicamentos à disposição dos médicos no SNS, no que caminhará cada vez mais para um regime de linhas orientadoras padrão, à semelhança do que existe noutros países europeus (como o Reino Unido). O objectivo é poupar despesa. Para isso, as linhas definem, por exemplo, listas de medicamentos e orientações para tratamento (abandono de terapêuticas muito caras em situações terminais, por exemplo). Casos de pessoas com cancro, sida e artrite reumatóide – doenças muito caras – são alvos preferenciais.
Quando se pensa em racionar cuidados de saúde são muitas as perguntas. Quem define as linhas orientadoras? Se um médico souber de um tratamento melhor, mas que viola a linha orientadora – algo provável no cancro, por exemplo, em que a investigação anda rápido – que liberdade tem para agir num contexto de aperto orçamental violento? E por racionamento estamos a falar só de não gastar 50 mil euros em casos sem esperança ou estamos a travar sistematicamente a entrada de tratamentos inovadores?
Discutir estes problemas em público – tirá-los do manto de falsa oratória política e da gaveta do secretismo – é obrigatório. Em primeiro lugar porque permite escrutinar melhor o processo de decisão sobre “orientações” que, com o objectivo compreensível de evitar o desperdício, envolvem a nossa saúde, seja da frequência com que fazemos exames à delicada opção por um novo tratamento para um cancro. Depois, porque é mais honesto: informa as pessoas sobre o que podem esperar do SNS (dá-lhes poder perante o sistema) e tira dos médicos (formados para fazerem tudo pelos doentes) o peso exclusivo de agirem como gestores hospitalares.
Mas a transparência tem outro grande benefício: permite-nos saber onde está a tolerância da sociedade na hora de racionar cuidados de saúde. A necessidade de poupar na Saúde pública é irrefutável. Mas, no debate sobre Saúde, olhamos sempre para o SNS como uma ilha isolada. Não é. Em 2012 o SNS representará cerca de 10% do total da despesa pública em Portugal.
Há, por isso, muita margem para fazer escolhas. O que queremos? Um serviço de saúde de país avançado ou uma estação de televisão pública? Um óptimo serviço de saúde ou mais pressão política do país para renegociar os juros da dívida? Cortar nos 222 milhões de euros que custam por ano os medicamentos para o cancro ou cortar mais ainda nos apoios às fundações e nas borlas nas PPP? (Estes são dilemas fáceis...) É preciso escolher – e para sermos pressionados para pressionar o poder político a escolher o melhor possível, com cabeça fria e coração quente, precisamos de informação. Não mandemos, por isso, pedras a quente sobre quem tenta trazer estas questões para a luz do dia.
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