Órfãos da guerra civil

Público 2012-09-04 Pedro Lomba

Durante o mês de Agosto, um colunista deste jornal, Manuel Loff, serviu-se do seu espaço de opinião com um único objectivo. Quis instigar a convicção nos leitores de que a excelente História de Portugal de Bernardo Vasconcelos, Nuno Gonçalo Monteiro e Rui Ramos, que o Expresso tem distribuído semanalmente, é, no que respeita aos capítulos assinados por Rui Ramos sobre o Estado Novo, um texto pró-Estado Novo, pró-ditadura e pró-salazarismo. Em suma, teríamos aqui uma obra de "branqueamento", escrita por um historiador "fascista", tal como a palavra é ainda estupidamente usada em Portugal para demonizar e declarar proscrita uma pessoa.

Conhecendo as citações de Rui Ramos que fundamentariam a sua condenação na fogueira antifascista, o acto pareceu-me logo desonesto e repugnante. Mas também arcaico, digno de outras épocas e regimes. Era Rui Ramos quem estava ser vilipendiado sem apelo por este peão de brega. Mas qualquer outro, de ideias muito diferentes, podia estar no seu lugar.

Dou um exemplo. Entre as citações distorcidas e descontextualizadas atribuídas a Rui Ramos estava a de que o Estado Novo era "uma espécie de monarquia constitucional", quando Ramos se limita a fazer uma comparação entre o estatuto do Presidente da República na letra da Constituição de 1933 e os monarcas do século XIX. No esclarecimento que publicou neste jornal, Ramos assinalou isto mesmo e, com paciência, lembrou "o que juristas de diversos quadrantes ideológicos escreveram sobre o assunto". (Um deles, Jorge Campinos, até escreveu nos anos 1970 um livro com o título O Presidencialismo do Estado Novo: um presidencialismo de "fachada", como é evidente.) Era inútil. Como a verdade não lhe interessava para nada, Loff reincidiu na falsidade.

Nunca estamos livres de que nos imputem aquilo que não dissemos, não escrevemos e não defendemos. O território não-editado da Internet só aumenta esses riscos. Mas numa sociedade como a nossa que depende da conversação pública entre pessoas e ideias diferentes, está em causa algo de mais decisivo: o sentido da política, a interacção entre adversários, o valor da informação factual na discussão pública. É o que Hannah Arendt queria preservar quando dizia que "a liberdade de opinião é uma farsa se a informação factual não estiver garantida".

Palavras bem oportunas. Seria mais fácil se Rui Ramos não fosse um nome público, conhecido pelos seus pontos de vista. Como é, tornou-se um alvo apetecível para quem acredita que o debate público deve ser uma emanação da cultura da guerra civil, uma batalha campal em que nos dividimos todos entre "nós" e "eles" e em que tentamos atingir o adversário com deturpações que destroem o valor da verdade factual.

Esse é o ponto fundamental. Não interessa que um historiador de esquerda pudesse ter escrito o que Ramos escreveu. Não interessa sequer o que ele escreveu. À cultura da guerra civil só interessa transformar os adversários em demónios "fascistas", suspeitos, obrigados a autojustificarem-se no altar dos censores morais. Ramos aliás deixou de existir. É a caricatura de um inimigo imaginário que estes órfãos da guerra civil perseguem.

A democracia tem-nos providenciado uma aprendizagem das regras do debate democrático. Mas vivemos tempos perigosos. Se este sectarismo violento e falsificador vencesse na sociedade portuguesa, estaríamos a retroceder em muito do que construímos. Ficaríamos todos vulneráveis perante quem conseguisse fabricar uma "verdade ideológica" independentemente dos factos e da verdade. E aí, de facto, a liberdade seria uma farsa.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António