Aquilo que nenhum político vos dirá

Público 2012-09-28 José Manuel Fernandes
Portugal pode não ter alternativa a renegociar a dívida e a sair do euro. Mas não será nada bonito de se ver

Quando pensamos que nada pode correr pior, é sempre possível que tudo piore ainda mais. Por isso é bom começar a pensar nos cenários de que ninguém nos fala, sobretudo não nos falam os políticos. Os cenários de falhanço completo da estratégia seguida nas últimas décadas. Pois é a isso que estamos a assistir.

Há 20 anos, quando Portugal assinou o Tratado de Maastricht, ainda Cavaco Silva era primeiro-ministro, vivíamos duas imensas ilusões. Nos anos anteriores a economia portuguesa tinha crescido a um ritmo que não conhecia desde o final da década de 60, início da década de 70. A adesão à União Europeia e o cavaquismo triunfante pareciam estar a cumprir o sonho de gerações de portugueses, isto é, a rápida aproximação ao nível de vida da Europa desenvolvida. A economia passava por um rápido processo de transformação e liberalização. Comprometermo-nos com um tratado que procurava fazer de toda a União uma espécie de Alemanha gigante parecia não só razoável como lógico.

Este sonho não era só português, era de toda a Europa do Sul, e pareceu estar a materializar-se quando, no caminho para a moeda única, a inflação começou a desaparecer, as taxas de juro baixaram de forma dramática e pareceu haver dinheiro para todos os investimentos, mesmos os mais disparatados, e para um consumo sem limites. Embebedámos-nos, como se embebedaram os gregos, os espanhóis e os italianos. Nos nossos países aconteceu com o euro o contrário do que devia ter acontecido. Em vez de nos tornarmos mais disciplinados, como os actores das economias do Norte da Europa, ficámos mais irresponsáveis. Em vez de aproveitarmos os mecanismos da moeda única para abrirmos mais as nossas economias, aprofundando o mercado único, fechámos essas economias, diminuindo o seu grau de integração com o resto da zona euro. Isso não correspondeu sequer a uma reacção irracional: as empresas, face ao boom do mercado interno de cada país, insuflado pelo crédito fácil, deixaram de procurar os mercados externos. Para usar a linguagem dos economistas, o dinheiro disponível passou do sector transaccionável para o sector não transaccionável.

Ou seja, o euro fez-nos muito mal. Não só nestes últimos anos, mas desde que, como se diz com algum exagero mas também com verdade, começámos a destruir a nossa indústria e a ver tornarem-se nas grandes empresas nacionais os fornecedores de serviços protegidos da concorrência (telecomunicações, energia), os grupos de comércio a retalho e os conglomerados da construção civil.

O resultado de tantos anos de escolhas erradas foram duas dívidas gigantescas. A dívida pública está a um passo de ultrapassar os 120% o PIB. E a dívida externa (que inclui as dívidas das empresas, dos bancos e dos particulares ao exterior) disparou para valores ainda mais estratosféricos, tendo uma evolução negativa muito rápida, pois em 1995/96 Portugal praticamente não tinha dívida externa. O crescimento da dívida pública é o resultado dos défices acumulados pelo Estado; o crescimento da dívida externa é a consequência de há quase 15 anos Portugal ter sistematicamente consumido, ano após ano, mais 10% do que aquilo que produz.

As intenções de quem negociou o euro e subscreveu Maastricht podem ter sido as melhores do mundo, e não há dúvidas de que as economias do Norte da Europa, mesmo as que não aderiram à moeda única (casos da Suécia, Dinamarca ou Polónia), souberam tirar o melhor partido das oportunidades criadas. Já entre nós o sonho de ver o nosso portugalito transformado numa versão atlântica e ensolarada da Alemanha foi apenas uma enorme ilusão. Fatal ilusão.

Hoje o nosso país está preso numa armadilha. Porque está no euro, não tem política monetária, logo não pode desvalorizar a moeda para tornar as importações mais caras e as exportações mais competitivas. Porque está no euro, o Banco de Portugal não se pode pôr a imprimir moeda para ajudar o Estado a pagar as suas dívidas e o seu défice. Porque está no euro, está num colete de forças. E o esforço para sair desse colete de forças está a falhar.

O processo que iniciámos há pouco mais de um ano é uma tentativa desesperada de recolocar Portugal num, chamemos-lhe assim, "caminho alemão", ou "caminho nórdico". Por um lado, diminuir o défice público. Por outro, reverter os equilíbrios da economia para a fazer exportar mais e importar menos, processo impossível de conseguir sem uma compressão do consumo interno. À frente desse processo tem estado o mais "alemão" de todos os ministros das Finanças da democracia portuguesa, Vítor Gaspar, ele mesmo um homem das negociações de Maastricht.

Parece estar a tornar-se óbvio que Portugal não quer, ou não pode, ou não consegue, seguir este caminho. Não o digo por causa das manifestações do 15 de Setembro. Digo-o por causa do que significou o Conselho de Estado. E das exigências da Concertação Social. Digo-o porque os portugueses, como é seu hábito secular, querem tudo e não querem nada. Ainda ontem era muito significativa a capa do Jornal de Negócios sobre o que os portugueses quereriam do próximo Orçamento do Estado: "Lóbis, corporações, empresários e sindicatos estão juntos. Pedem menos cortes, mais investimento, apoios às exportações, redução selectiva da TSU, descida do IVA e aposta na reabilitação urbana." Ou seja, querem como de costume que tudo fique na mesma.

Como se isto não chegasse, os nossos números são demasiado pesados. O pagamento de juros da dívida pública já leva mais dinheiro do que o que se gasta em Educação ou em Saúde, e, enquanto existir défice público - mesmo que seja apenas de 3% -, essa dívida vai continuar a subir. Por outro lado, para voluntariamente chegarmos ao equilíbrio orçamental, teríamos de cortar quase um quinto das despesas do Estado e da Segurança Social, se tomarmos como referência o ano de 2010. Isso não é possível sem abdicar de boa parte do nosso Estado social, o qual consome três quartos da despesa pública primária.

Mas há mais. Mesmo aquilo que está a correr melhor - o equilíbrio das nossas contas externas - é muito insuficiente para permitir grandes optimismos. Um economista que se tem dedicado ao tema, Ricardo Cabral, estima que para reequilibrar em 15 anos a nossa situação necessitaríamos de crescer 4% ao ano e de ter um saldo positivo na balança comercial de 6% (o tal saldo que foi sempre negativo desde a II Guerra Mundial). Ninguém acredita que seja possível.

Tenho falado nos últimos meses com muitos economistas, incluindo com antigos ministros das Finanças, que conhecem os números e convergem quase sempre num ponto: assim não vamos lá. Curiosamente quase todos eles se inibem de tirar as consequências, porque isso implica tocar em dois tabus. São esses tabus que temos de começar a discutir.

O primeiro tabu é o da renegociação das dívidas. Não que essas dívidas não existam, como dizem os viciados em despesa pública. Mas porque genuinamente não conseguimos pagá-las e elas condicionam demasiado o nosso futuro para podermos ter qualquer esperança.

O segundo tabu é o do abandono do euro, acabando de vez com a ilusão de que conseguimos ter a disciplina dos alemães. A nossa economia, para nossa desgraça, não mostrou ser capaz de viver sem inflação e sem desvalorizações. Será o fim do nosso sonho de convergência com "a Europa", mas marcará também o regresso a uma vida com os pés na terra.

O país que sairia destas duas medidas não seria bonito de se ver, mas seria ao menos um país de novo entregue a si próprio, que teria reconquistado a liberdade que pusemos nas mãos da troika. É altura de começar a discutir o preço que teriam para todos nós estas alternativas. Estou cansado da conversa sobre os "cortes" por parte de quem, na verdade, não quer "cortes" nenhuns e tem como único sonho encontrar quem que nos pague as contas, chamando a isso "solidariedade".

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