Interrupções

Inês Teotónio Pereira , i-online 15 Set 2012


Tenho a certeza de que os meus filhos nunca me teriam deixado assistir em directo à chegada do homem à Lua ou ao último episódio da Gabriela

Existem várias coisas irritantes nas crianças. Muitas, mesmo. Ser criança é, antes de mais, ser irritante. Existem outras características, qualidades, defeitos, etc., mas aquilo que está no cerne, na génese de qualquer criança, é ser irritante. Elas entornam copos de água com muita frequência, gritam e falam num tom exageradamente esganiçado, choram com muita facilidade e alto, interrompem-nos sempre que vislumbram uma oportunidade, dormem quando não devem e não dormem quando devem, demoram muito tempo a comer, não sabem limpar o rabo nem prender o cinto de segurança e estão sempre a pedir coisas, pedem tudo o que lhes passa pela cabeça.
Se não fossem estas coisas irritantes, seria bastante fácil viver com crianças. Seria mesmo agradável. Teríamos uma vida do tipo daquelas vidas que vimos nos filmes dos anos 30, 40 e 50, onde as crianças são todas extraordinariamente calmas e educadas. São uns anjos. Mas isso já não é assim. As crianças de hoje foram educadas por pessoas totalmente diferentes daquelas que educaram os pequenos actores da “Lassie” ou da “Música no Coração”: as crianças de hoje foram educadas por nós... Lembram-se das manifestações da PGA? Pois.
Mas voltando ao tema central, as coisas que mais me irritam em toda esta intensa convivência com os meus filhos são exactamente as interrupções. As interrupções irritam-me mais que os copos de água que eles entornam à mesa e mais ainda que as vozes esganiçadas dos desenhos animados. Eu perco a cabeça com as interrupções e tenho uma profunda admiração por aquele tipo de pai que consegue manter uma conversa, seguir um raciocínio, ao mesmo tempo que a criancinha trepa por ele acima a gritar repetidamente a mesma coisa e só se cala quando o pai lhe responde, com toda a calma e ao fim de dez minutos de trapezismo: “Já te dou o gelado, agora deixa-me falar.” É épico.
A verdade é que as crianças sabem interromper como ninguém e não fazem qualquer cerimónia. Elas interrompem com ciência, tipo tortura – vão experimentando os limites da nossa paciência até nós cedermos. Elas esperam que a nossa conversa (ao vivo ou ao telefone) esteja no momento mais emocionante, mais importante ou mais engraçado e… pumba, desatam a falar por cima, revelando um sobranceiro desprezo pela nossa conversa. Ou então (e esta é a pior) esperam que chegue o único momento do telejornal que queremos ouvir e aproveitam para nos contar o dia de escola ao pormenor. E só se calam quando a notícia que queríamos ouvir acaba. (É por isto que todos os dias agradeço a Deus as legendas: pelo menos, nas séries e nos filmes estou a salvo).
Este tipo de interrupções acontece-me com tal frequência que nem me lembro da última declaração emocionante de um PM a que tenha conseguido assistir em directo. Vejo tudo gravado, comentado ou cortado. Eu tenho a certeza absoluta de que os meus filhos nunca me teriam deixado assistir em directo à chegada do homem à Lua ou a outros momentos históricos, como o último episódio da Gabriela.
Ainda não descobri como evitar tantas interrupções como estas sem recorrer a gritos ou à violência, mas tenho a certeza absoluta de que, quando for velhinha, me vingarei: quando o PM do tempo deles estiver a anunciar a centésima quadragésima terceira subida de impostos, eu não os deixarei ouvir nem uma só palavra. Eles só saberão quanto é que ainda terão de pagar pelas PPP em diferido. Juro. 

Comentários

Anónimo disse…
Cara Inês Teutónio Pereira, em primeiro lugar lamento que não tenha o bom senso de perceber o que deve ou não dizer em público. Em segundo lugar, lamento pelos seus filhos, porque tiveram o azar de nascer de alguém que não demonstra grande instinto maternal. Eu venho de um colégio onde um dos valores centrais é a disciplina, venho de uma família tradicional e conservadora, numerosa, e como tal, habituado a disciplina. E hoje, um jovem adulto na faculdade, percebo em certa medida a sua irritação. Mas as crianças são mesmo assim, porque precisam de atenção, daqueles que mais importam para elas. Espero que nunca lhe chegue o dia em que os seus filhos não queiram ouvir as suas chamadas de atenção, ou em que simplesmente não vejam razões para lhe chamar a atenção. Espero sinceramente que tenha uma velhice tranquila e com autonomia, porque com a escola que levam, não me cheira que dar atenção a "velhinhos irritantes que entornam copos de água, que nos interrompem, que põem a televisão aos altos berros para poderem ouvir, que repetem a mesma conversa milhentas vezes, que contam todos os detalhes da histórias do século passado, quando se debatia o aumento da TSU, etc etc etc."
Atenciosamente, um cidadão preocupado com os nossos deputados.

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