Pelo direito fundamental a não ser dr.

Público 2012-09-11 Paulo Rangel
Apostar no ensino vocacional não é discriminar, é abrir horizontes, é criar oportunidades

1. A opção política do Governo pelo reforço da dimensão vocacional, técnica e profissional no ensino básico está a dar origem a um debate que, pela sua demagogia e simplismo, verdadeiramente me arrepia. Sem prejuízo do esclarecimento e do ajustamento de alguns aspectos, apoio convictamente a orientação traçada e seguida pelo ministro da Educação. De resto, há mais de dez anos que tenho vindo a escrever e a intervir politicamente sobre o tema, justamente no sentido agora preconizado.

A ideia peregrina de uma escola de modelo único, em que todos - independentemente do seu percurso de vida escolar, das suas aptidões e até da sua vontade - estão destinados a atingir o cume da estratosfera académica é perversa e paradoxal. A ideia provinciana de que a frequência de um ramo de ensino mais vocacional é, só por si, um motivo de desqualificação e discriminação é da ordem do preconceito e do elitismo. A ideia gratuita de que a escola deve ser um espaço igualitário - no qual se vive e atingiu o estádio final da sociedade democrática - e não precisamente um espaço de correcção das desigualdades de partida é socialmente nefasta e humanamente cruel.

Não se põe em causa a intenção generosa de todos aqueles que defendem o actual paradigma de um ensino essencialmente orientado para uma finalidade universitária, pois estão genuinamente convencidos de que, na vida, nada há de melhor do que essa formação académica. Mas a verdade é que esta abstracção igualitária arranca, ela própria, de uma compreensão elitista e, mais grave e pior, converteu-se no mais maquiavélico e poderoso instrumento de reprodução e ampliação das desigualdades sociais.

2. O debate inicia-se invariavelmente pelo risco do regresso à dualidade salazarista do ensino liceal e do ensino técnico. Dualidade que, diz-se, teria sido intrinsecamente discriminatória e teria sido responsável por uma impiedosa estratificação social. Nada de mais errado e de mais impreciso. O sistema político e educativo do Estado Novo foi profundamente discriminatório e gravemente injusto, mas não exactamente pelo lado da aposta no ensino técnico. A exclusão pura e dura da grande massa das crianças do sistema de ensino, que mal frequentava, reduzindo-a a um estado de analfabetismo ou analfabetismo funcional, é um traço criminoso da concepção paroquial e "ruralista" de Salazar. Mas isto em nada implica uma condenação do sistema de ensino técnico, o qual - decerto com erros de concepção e em linha com uma visão corporativa -, foi, em muitos casos, um verdadeiro patamar de elevação económica e cultural, um autêntico indutor da mobilidade social. Na verdade, o ensino técnico, operando uma inequívoca diferenciação, possibilitou a muita gente escapar àquele destino quase fatal do analfabetismo endémico. Em muitos casos, aliás, abriu - com mais degraus e com mais sacrifícios - as portas do ensino superior, fosse numa primeira via nos chamados institutos, fosse numa segunda via nas próprias universidades.

Em paralelo com o ensino técnico e com os ressentimentos e recriminações que ele parece suscitar, vale a pena salientar o trabalho importantíssimo - e este no plano da mais alta e erudita cultura - que desempenharam os seminários da Igreja Católica. Estas duas instituições educativas - escolas técnicas e seminários - tinham evidentemente as suas disfunções e defeitos estruturais, mas contribuíram de um modo assinalável para a o progresso económico, social e cultural da sociedade portuguesa. Mais do que vias discriminatórias foram factores de realização - parcelares e imperfeitos, claro está - de justiça social.

3. Há, com efeito, muitas maneiras de olhar para a sociedade e tantas outras de ver a educação que ela patrocina e faculta. Pode olhar-se de um modo abstracto e intelectual, privilegiando a ideia de igualdade radical, a qual acaba consabidamente no favorecimento factual das elites existentes. É exactamente o que se passa com as práticas do facilitismo na avaliação, geralmente legitimadas pelo ideal de inclusão. Os que dispõem de um contexto económico e social mais abonado estão sempre em vantagem, pois suprem as insuficiências da escola com as vantagens do meio de proveniência.

A aspiração de um sistema monolítico, milimetricamente igual para todos, pode ser bem-intencionada mas conduzirá inevitavelmente a resultados perversos. A escola tem de ser capaz de responder às diferentes vocações e aptidões de cada um, procurando criar as condições para que possa evoluir humana, cultural e também socioeconomicamente. De que adianta uma escola simétrica e asséptica, formalmente cumpridora da igualdade absoluta, se ela produz taxas de abandono e de exclusão vergonhosamente altas? E de que adianta persistir na ideologia da escola "inclusiva" - facilitista e unidimensional - se ela, a prazo, vai empurrar os seus incluídos para a exclusão laboral, profissional e social?

Será que aquilo que desejamos é mesmo uma escola que só forme académicos e universitários, todos igualmente nobilitados pelo tratamento de dr., que não é senão uma sobrevivência da velha e relha "nobreza de toga"? Será que não estamos preparados para dar aos nossos jovens a oportunidade de terem uma profissão ou um ofício que não passe pelo altar da academia? Apostar no ensino vocacional não é discriminar, é abrir horizontes, é criar oportunidades, é realizar um direito fundamental: o direito fundamental a não ser dr. Por muito que isso custe, arda e doa à nossa sociedade tão jacobinamente elitista...

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