Uma herança do PREC

Público 2012-09-05 Carlos Fiolhais

Não será exagerado dizer que há crimes educativos e que, provavelmente, o maior cometido entre nós foi a abolição, após o 25 de Abril, do ensino técnico-profissional. Tal foi feito por unanimidade, no conturbado clima do PREC, em nome da igualdade social. Foi dito, e era verdade, que havia, no regime deposto, reprodução da estrutura social, estando o título de doutor quase só reservado aos filhos dos ricos.

Passados quase 40 anos é tempo, pesando a experiência acumulada, de tirar conclusões. É certo que a escola pública se alargou maciçamente - e ninguém deixará de se orgulhar por esse feito - mas não é menos certo que a quase ausência de saídas profisissionais produziu um sistema totalmente unificado até ao 9.º ano de escolaridade e com poucas escolhas depois dele, que leva uma multidão de alunos a desembocar no ensino superior, em busca do canudo. Não pode, contudo, ser bom um sistema em que praticamente não há escolhas. É como as lojas de souvenirs na antiga União Soviética onde só havia bustos de Lenine. Acresce que um sistema unificado conduz, em geral, à mediocridade, pois o nivelamento faz-se por baixo. Os bustos de Lenine eram toscos. Também é certo que, mesmo com a fasquia baixa, por vezes muito baixa, tem havido um abandono escolar que nos envergonha. Muitas crianças e jovens têm fugido do sistema, por lá não encontrarem um percurso adequado.

De facto, a insatisfação geral com o nosso sistema educativo resulta, em larga medida, da "via única" que foi instituída em nome da igualdade. A escola pública, ao querer servir a todos, não serve a ninguém. Não serve sobretudo aos filhos dos pobres, uma vez que eles não encontram nela um elevador social suficientemente poderoso. A escola era a sua esperança de futuro, mas, apesar do esforço denodado de muitos professores, o nosso sistema de ensino não lhes oferece a necessária qualificação para a vida.

A escola tem de ser mais exigente se quer preparar as crianças e jovens para um mundo competitivo e global. Só uma orientação nesse sentido é capaz de a promover como instituição, promovendo em particular a condição de professor. Mas é claro que, para isso, tem de existir uma oferta mais diversificada. A escola tem de pedir mais tanto para se ser doutor como para se ser outro profissional. Nem todos poderão ser doutores, não porque à partida não disponham de oportunidades iguais, mas porque no percurso mostraram ter capacidades díspares. A todos devem ser dadas iguais chances, mas aqueles que se revelarem melhores nos estudos conducentes a um exercício profissional (qualquer que este seja!), combinando a sua aptidão natural com o seu esforço, deverão ser recompensados. Não se trata de fazer darwinismo social, mas sim de reconhecer que é injusto tratar como igual aquilo que é muito diferente.

É bem conhecida a vontade de Nuno Crato, o ministro da Educação e Ciência, de promover a exigência. Tal começou já a ser feito com a introdução de provas finais no 6.º ano a Língua Portuguesa e Matemática e anunciam-se provas finais no 4.º ano em vez de "aferições". Não se sabe que mais exames haverá, se, por exemplo, os exames do secundário serão aumentados ou modificados. Mas o Governo quer também, corajosamente, enfrentar a questão da criação de oferta vocacional no básico e do reforço do ensino profissional no secundário. Para ganhar o desafio da qualificação e debelar o flagelo do abandono escolar, são necessárias vias profissionalizantes mais cedo no percurso escolar, isto é, não apenas no secundário mas, a partir de certa altura, logo no básico, com a salvaguarda óbvia da possibilidade de mudança oportuna de via. Na Alemanha, e noutros países mais desenvolvidos da Europa, há muito tempo que é assim: aprende-se cedo para chefe de cozinha ou mecânico de automóveis, que são profissões tão dignas e, nalguns casos, tão bem remuneradas como as que foram antecedidas por formações académicas.

Conforme disse em 2003 Guilherme Valente, um dos mais lúcidos críticos do actual sistema educativo: "É urgentíssimo... oferecer um ensino técnico-profissional de qualidade para o qual a escola encaminhe os alunos que para ele revelem vocação e gosto, valorizar socialmente a formação de qualidade em todos os domínios, enfrentando a doutorice do diploma, a que quase sempre não corresponde nada" (ver o seu livro Os Anos Devastadores do Eduquês, que acaba de sair na Presença).

Temos, como herança do PREC, o espectro do recuo no tempo. Mas ninguém quer ir para o passado, um sítio aqui pouco recomendável. Nestes tempos difíceis, a nossa obrigação é a de preparar o futuro, sem medos nem preconceitos. Neste regresso às aulas, esse deve ser o compromisso não só dos decisores políticos, mas também e principalmente o dos professores, dos alunos e das suas famílias.

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