Processar Sócrates? Só precisam de um espelho

Henrique Raposo
www.expresso.pt
11 de Setembro de 2012

Um membro do Banco Central da Islândia apareceu em Portugal para instruir os nativos. Gylfi Zoega, o génio do gelo, diz que Portugal devia investigar quem está na origem do elevado endividamento do país. É preciso descobrir, diz ele, a razão de fundo que levou os governos e os bancos a pedir tanto dinheiro emprestado . Confesso que tenho dificuldade em compreender esta sugestão de julgamento (em tribunal?) de líderes democráticos que governaram às claras depois de terem sido eleitos às claras. Democracia não é sinónimo de verdade, e maioria não é sinónimo de ter razão. Por outras palavras, um líder eleito não é dono da verdade, logo, pode cometer erros. À posteriori, não faz sentido julgar criminalmente estes erros, porque os ditos resultaram de escolhas livres e aprovadas pelo eleitorado. Não há aqui teorias da conspiração, há apenas consequências políticas de escolhas políticas.

Se a minha memória não me falha, Sócrates duplicou a dívida soberana de Portugal durante os seus seis anos de governação. Porquê? O PS venceu duas eleições prometendo coisas que dependiam do crédito obtido nos tais mercados internacionais. Exemplos? Em 2009, Sócrates aumentou a função pública e prometeu mais obras públicas. Nesse mesmo ano, Manuela Ferreira Leite e muitos outros avisaram vezes sem conta contra os perigos do endividamento. Os portugueses não quiseram saber, e foram atrás do "direito ao TGV" e outras demências. Que outro tipo de demência? Por exemplo, uma região sentia-se inferior caso não tivesse uns quilómetros de auto-estrada a passarem pelo seu território. As PPP e as ex-Scuts do dr. Paulo Campos nasceram destas ânsias populares. Quem foi o responsável pelo endividamento do Estado? Para responderem a esta pergunta islandesa, os portugueses não precisam de um tribunal, só precisam de um espelho.

E o endividamento privado? Aqui o cenário é um pouco diferente. Na política e na dívida do Estado, ninguém pode dizer que não foi avisado em relação aos perigos de Sócrates e do despesismo socialista; na questão do crédito à habitação (o centro do nosso endividamento privado), ninguém avisou as pessoas. Os bancos e os governos (através do crédito bonificado) potenciaram ao máximo aquele desejo português pela posse de terra. Mas, lá está, os portugueses não foram vítimas passivas, não há aqui teorias da conspiração. Se todas as regiões queriam uma auto-estrada, todos os portugueses queriam ser proprietários da sua própria casa, e ainda hoje olham com desconfiança para o arrendamento. Na mentalidade que se desenvolveu ao longo destas décadas, o sujeito que paga uma renda ao senhorio é um totó, "pá, estás a dar dinheiro a outro gajo, quando devias ter a tua casa". Resultado? Se a memória não me falha, a taxa de proprietários da Alemanha está abaixo dos 50%; em Portugal, está acima dos 80%. Neste tema, os portugueses têm razão para criticar bancos e governos, mas antes têm de olhar para um espelho. Este segundo espelho é mais pequeno do que o primeiro, mas não deixa de ser um espelho.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António