A hostil tolerância

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2012-09-24

Portugal tem um grave problema educativo. Tem-no há décadas. Todos o diagnosticam, todos sabem a solução e ninguém resolve. Um livro recente ajuda a perceber as razões do paradoxo.
Os pais queixam-se e os professores são crescentemente severos na denúncia dos erros educativos. Aos alunos ninguém pergunta, mas também acham que a coisa vai mal. Com a eventual excepção do ministro do momento, todos dizem que a educação está péssima. E até ele estará de acordo, logo que saia, como todos os antecessores e possíveis sucessores.
Uma simples inspecção da estrutura explica a causa: o sistema educativo português segue o modelo estalinista. Aliás é, com Cuba e Coreia do Norte, uma das poucas realidades sociais ainda nesse curioso sistema de duvidosa memória. O Ministério da Educação, descuidando as funções normais desse departamento num estado democrático, assume-se como "gosplan", controlando centralmente estrutura, evolução, gestão e operação dos actos escolares. Assim explodem custos, multiplicam-se desperdícios e pululam professores desocupados. Pior, consciente do problema educativo, o Ministério reage com sucessivas reformas e revisões, introduzindo uma nota original de "revolução permanente" trotskista.
É verdade que, apesar de hegemónico, o mecanismo não é totalitário. Um conjunto de acossadas escolas particulares permanece teimosamente ao lado da esmagadora mole pública. Mas a sua existência é sempre precária, ameaçada, incerta. Em particular nestes anos o ensino privado sofre mais um ataque devastador, que muitos consideram fatal. O mais curioso é que isto não varia com a linha política, pois permanece com qualquer orientação do executivo.
O governo Sócrates foi especialmente agressivo contra a liberdade de ensino, por razões ideológicas, enquanto o governo Passos usa alegadas razões financeiras. O que constitui uma rematada mentira, porque fica muito mais caro ao Orçamento de Estado ter um aluno no sector público que no privado com apoio. Os cortes nos contratos de associação são suicidas para o Orçamento.
Num tempo que apregoa a liberdade como valor supremo, de que a liberdade educativa é parte central, num tempo de concorrência, abertura e globalização, num tempo de privatizações, até forçadas e apressadas, como se explica a tendência estatizante na educação nacional, que repetidamente provou a sua ineficácia? A razão é muito mais profunda que a flutuação governativa e até geracional.
A verdadeira origem vem do traço paternalista da cultura portuguesa, que sempre gosta de sentir a mão protectora do Estado. Até para poder dizer mal dela. Em Portugal nunca houve, nem pode haver, pensamento liberal. Há críticos e defensores do Governo, mas da extrema-esquerda à extrema-direita toda a gente só fala do Estado. Esta atitude de fundo manifesta-se depois nas opções particulares. Os pais querem saber que o Estado paga, mesmo quando o único dinheiro vem dos nossos impostos e é mal gasto. Os professores querem ser funcionários públicos, mesmo que detestem o patrão-Estado. O Ministério quer aumentar ao máximo as suas competências, mesmo sabendo que ficará com culpas de que é inocente.
Isto está patente no livro do professor Jorge Cotovio O Ensino Privado nas Décadas de 50, 60 e 70 do Século XX. O Contributo das Escolas Católicas (Gráfica de Coimbra 2, 2012). A obra monumental, além de exaustiva investigação das fontes documentais, estatísticas e legislativas, inclui 30 preciosas entrevistas a protagonistas, alguns já falecidos. Lendo esta fascinante história compreende-se a questão educativa portuguesa, não apenas nessa época e tipo de escola, mas em geral.
"Os trinta anos do período em análise são atravessados por dois regimes com diversos 'Estados' e variadas políticas governamentais. Apesar deste mosaico, e no tocante ao ensino privado e temário conexo, a atitude do Poder manifesta um denominador comum que se pode traduzir pela palavra 'tolerância'" (p. 379). Assim não admira que Portugal tenha há décadas um grave problema educativo.

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