Artes e ofícios

Público 2012-09-06 Pedro Lomba

Já noutra ocasião falei do americano Matthew Crawford que, em 2009, escreveu um dos mais originais ensaios que li nos últimos anos: Shop class as Soulcraft (pena que esteja por traduzir). Qual é a sua história? Com um doutoramento em filosofia pela Universidade de Chicago, Crawford preparava-se para ser académico, consultor, assessor do governo. Eram destinos naturais para uma pessoa como ele. Trabalhou alguns meses, cada vez mais contrariado, para um instituto de investigação em Washington. Mas depressa compreendeu o motivo do seu desalento. Não via sentido naquilo que fazia. Não via sequer trabalho naquilo que fazia.

Pensou que tinha de mudar. E mudou. Surpreendentemente, acabou por largar o instituto e abrir uma oficina de reparação de motas. Desde criança que aprendera mecânica, gostava de motas, conhecia bem a sua ferramenta. No livro faz uma admirável defesa da aprendizagem de ofícios, do ensino prático, do trabalho com as mãos, do conhecimento real das coisas; e uma não menos admirável crítica das falácias educativas e uniformizadoras que, em nome da mais rígida igualdade, dissolveram o ensino vocacional e profissional, reduzindo-o a uma escolha menor. Hoje Crawford divide o seu tempo entre a filosofia e as motas.

Não foi um fenómeno unicamente português. Economia dos serviços, economia da informação, economia criativa. Lembram-se? Íamos todos ser diplomados e mestrados; íamos todos ser criativos, arquitectos, designers, publicitários; íamos todos arrumar títulos, canudos, gravatas. Íamos, de facto. Para muitos, demasiados, não houve espaço para isso. Não tiveram oportunidade, às vezes não tiveram jeito, não os quiseram no atelier ou no escritório. Pagaram-lhes misérias. Entretanto, o futuro que pensávamos ser permanente, passou; o futuro que julgávamos aberto, fechou-se. Mas podemos sempre dizer, em comícios de família, que somos os mais qualificados de sempre. Para começar, qualificados em ilusões.

O ensino português não produz, com normalidade, pessoas como Matthew Crawford. Carrega uniformemente, por uma única via, toda a gente até ao 9.º ano, porque vê com horror qualquer diferenciação antes disso. Alunos interessados ou desinteressados, aplicados ou repetentes crónicos, alunos que acabam por abandonar a escola ou fluem depois tardiamente para universidades de baixa qualidade, são tratados como uma só massa. Mesmo uma diferenciação acompanhada e reversível, que mantenha ligação ao ensino regular e oriente os alunos para uma ampla gama de vocações, como Nuno Crato aparentemente pretende implantar, é vista como um selo de menoridade perpétua estampado nos alunos.

Em tempos, a secundarização do ensino vocacional, profissional e politécnico, de resto três coisas diferentes, era um facto reconhecido. Infelizmente, aquilo que é uma realidade pacífica e inteligentemente concebida na Alemanha e noutros lugares, o ensino vocacional e de profissões, é agora um ataque aos mais pobres, uma predeterminação do seu futuro e, como não podia faltar, uma ideia "salazarenta".

Nuno Crato continua a partir muita falsa porcelana do nosso ensino. Crato não é facilmente digerível em sectores que não toleram a mais pequena "transgressão" ao pensamento que criou em Portugal legiões de licenciados desempregados e mal pagos, cursos de brincadeira, taxas altíssimas de abandono escolar e a destruição do ensino de ofícios. Este desastre deveria em princípio alertar alguns "especialistas" para, em rebate de consciência, perceberem que o país não aguenta mais fantasias. Não contentes com isso, ainda querem matar à nascença uma reforma necessária.

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