Viver a um ou a dois, ser feliz ou infeliz

Público 20080902
José Manuel Fernandes

O direito a cada um "procurar a felicidade" é muito diferente da ideia de que um Parlamento ou Estado devem legislar a partir da sua ideia de felicidade individual. Até porque ela é isso mesmo: individual
Num dos mais luminosos textos políticos de todos os tempos, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, Thomas Jefferson escreveu que todo o homem tem direito "à vida, à liberdade e a procurar a felicidade". Inspirada nos conceitos de John Locke, uma das figuras maiores do iluminismo escocês, a frase adopta o conceito de "procura da felicidade" como fazendo parte dos direitos humanos essenciais, alargando o sentido mais estrito do direito à propriedade. Foi de resto esta a interpretação do Supremo Tribunal que, numa deliberação de 1967, recorreu à ideia de felicidade para fundamentar a impossibilidade de qualquer estado da federação americana limitar o direito ao casamento interracial. A referência ao conceito de "felicidade" não está contudo presente nos textos constitucionais (ou paraconstitucionais) da maior parte dos países, porventura porque a felicidade é algo de intrinsecamente pessoal. Dificilmente mesmo o mais utópico constitucionalista se atreveria a reivindicar para o Estado o dever de dar felicidade aos cidadãos, mas também não deixa de ser estranho que a ideia de impedir o Estado de limitar as possibilidades de cada um tentar ser feliz esteja tão ausente da tradição europeia ocidental, por exemplo.Vem tudo isto a propósito de uma entrevista com José Luís Pais Ribeiro que hoje editamos no P2 e de um livro recentemente editado, September Songs: The Good News about Marriage in the Later Years, de Maggie Scarf, recenseado na última The Economist. Há pontos comuns e pontos de divergência entre o que defende o psicólogo da Universidade do Porto e a jornalista da americana New Republic. De comum a ideia de que haverá muitas formas de chegar à felicidade na vida pessoal e, em particular, na vida a dois. De distinto a ideia de que a vida a dois num modelo tradicional de casamento não tem mais possibilidades de tornar as pessoas felizes do que outros modelos (como se deduz das palavras de Pais Ribeiro), algo que September Songs não confirma.Sem conhecer as inclinações políticas ou ideológicas dos dois estudiosos, é possível que tenham chegado a conclusões diferentes por olharem para o problema de duas perspectivas diferentes. Pais Ribeiro, mesmo reconhecendo que "a felicidade depende de inúmeros factores pessoais", acaba por enumerar algumas características que definiriam as pessoas com propensão para serem felizes, o que não deixa de colocar alguns problemas. Por exemplo: é mesmo indispensável, para alguém se sentir feliz, ter "uma vida social rica e satisfatória"? Ou não será isso um estereótipo que poderia subvalorizar da mesma forma que subvaloriza "o estereótipo de que a felicidade depende da vida a dois"? Já Maggie Scarf, de acordo com as sínteses disponíveis sobre o seu livro, não procura definir felicidade ou condições para a felicidade, antes parte de estudos em que se pede às pessoas para dizerem como se auto-avaliam e de dezenas de entrevistas que ela própria realizou. Aquilo a que chama "boas notícias para o casamento" é ter encontrado formas de ser feliz na relação a dois que se afastam de um outro estereótipo (este também criticado por Pais Ribeiro), o que associa o casamento sobretudo a paixão e relações sexuais intensas. Ela comparou (e utilizou estudos que comparam) a felicidade pressentida por casais que atravessaram momentos complicados e resistiram e casais que, nessas alturas, optaram pelo divórcio. Ora a sua conclusão, de acordo com The Economist, é que os casais que tentaram e conseguiram ultrapassar as suas crises tendem a dizer-se hoje muito felizes, sendo que a sua resposta à pergunta sobre se "o divórcio torna as pessoas mais felizes" é simples: "raramente". Os estudos que cita indicam que a maioria dos parceiros que se mantiveram unidos se considera feliz enquanto apenas um em cada cinco dos parceiros que se divorciaram conseguiu encontrar depois uma nova relação mais feliz. Independentemente das análises académicas e dos estudos empíricos, algo ressalta contudo das reflexões anteriores: a de que é mesmo importante que o Estado se abstenha de definir as condições em que, sobretudo numa relação a dois, se é mais feliz, pois criará por certo mais infelicidade. E, legislando sobre o casamento e o divórcio, abstendo-se de ir por aí (algo de que não se abstinha, por exemplo, a explicação de motivos da vetada lei do divórcio), se centre antes nas condições do bom exercício da justiça e no seu dever de proteger os mais fracos. Os deputados vão voltar a ter uma hipótese de o fazer quando a lei do divórcio voltar ao Parlamento.

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