A força dos fracos
PÚBLICO
20.09.2008, Pedro Mexia
epois da louvável prestação portuguesa nos Jogos Para-Olímpicos, revi em DVD Murderball (2005), documentário nomeado para os Óscares que estreou cá com o título Espírito de Combate. É um documento humano memorável que nasceu de uma reportagem jornalística acerca da equipa americana de murderball. A modalidade teve origem no Canadá, na década de 1970, e pode ser descrita como "rugby em recinto fechado". Com esta particularidade: os jogadores são tetraplégicos em cadeiras de rodas. Cadeiras de alumínio, com rodas reforçadas, e às quais os homens estão amarrados. Como o nome inglês indica, é um jogo duro, com cadeiras transformadas em carrinhos de choque e jogadores agressivos. Murderball interroga os nossos conceitos de força e fraqueza. Os jogadores deste desporto especial são recrutados entre vítimas de acidentes de viação, quedas graves e doenças neurológicas. São homens que partiram o pescoço ou a coluna e têm uma mobilidade reduzida de pernas e braços. Usam membros artificiais, chapas, parafusos, e há mesmo uma escala de incapacidades que é uma das regras do jogo e que eles referem pelas vértebras afectadas. Mas estes homens não aceitam que os tratem como "deficientes". Rejeitam a piedade e o sentimentalismo. São competitivos, quezilentos, tatuados e engatatões. Num jogo, parecerem aríetes contra os adversários, e quando vão a um prova olímpica um deles confessa que não quer mimos: "we're not going to get a hug; we're going for a fucking gold medal".E nós entretanto já vimos que eles sofrem horrores, que passaram anos até terem de novo vidas independentes, até conseguirem despir as calças sozinhos ou comer sopa sem ajuda, anos de fisioterapia, de gadgets tecnológicos, de apoio das famílias. Um homem conta que às vezes sonha que o seu corpo está inteiro e saudável como antigamente. Outro mostra uma fotografia antiga com as pernas vivas e ágeis. Outro ainda confessa que todos eles imaginam que um dia se levantam e andam, Lázaros recuperados depois de uma morte precipitada. Mas eles nunca mais andam, nunca mais terão a vida de antigamente. E a vida continua. Uma vida nova, modificada, mas tão digna como a de outros tempos.O filme dá especial atenção à vida sexual destes rapazes, porque é um assunto que desperta a curiosidade de toda a gente. As mulheres, depois de alguns rodeios, perguntam se eles ainda conseguem, se ainda estão vivos da cintura para baixo, se ainda são homens como dantes. E eles explicam que sim, que estão vivos, que conseguem, que funcionam, embora com técnicas especiais e posições diferentes. Alguns deles têm namoradas atraentes, que não os vêem de todo como pessoas defeituosas. O documentário escolhe atletas masculinos talentosos como prova de que a dignidade pessoal (de que a virilidade é uma dimensão) não fica diminuída por um acidente ou uma doença. Os fortes continuam fortes mesmo que os outros os considerem fracos. Um homem chamado Joe Soares explica a dada altura que deixou Portugal porque no seu país natal estar numa cadeira de rodas "é um sinal de fraqueza", e nós vemos depois que ele tem uma personalidade autoritária e impulsiva. O mesmo acontece com os soldados que os jogadores visitam nos hospitais, mutilados das guerras americanas que aos olhos das pessoas passaram de heróis a deficientes, de fortes e fracos, mas que continuam os bravos de sempre.A heroicidade dos homens retratados em Murderball é uma heroicidade quotidiana, de pequenos gestos e não de grandes feitos, de perseverança e coragem e confiança. Um homem forte não é aquele que vence: é aquele que resiste. Tal como um homem fraco não é aquele que perde mas aquele que desiste. Vemos aqueles dínamos humanos com cola não mãos porque não fecham bem os dedos, deslizando nas suas cadeiras de alumínio como quadrigas, vemos como suam e lutam, e sabemos que são homens fortes. E todos nós, que não desistimos apesar de nos terem partido tantas vezes o pescoço, estamos gratos ao seu exemplo.
20.09.2008, Pedro Mexia
epois da louvável prestação portuguesa nos Jogos Para-Olímpicos, revi em DVD Murderball (2005), documentário nomeado para os Óscares que estreou cá com o título Espírito de Combate. É um documento humano memorável que nasceu de uma reportagem jornalística acerca da equipa americana de murderball. A modalidade teve origem no Canadá, na década de 1970, e pode ser descrita como "rugby em recinto fechado". Com esta particularidade: os jogadores são tetraplégicos em cadeiras de rodas. Cadeiras de alumínio, com rodas reforçadas, e às quais os homens estão amarrados. Como o nome inglês indica, é um jogo duro, com cadeiras transformadas em carrinhos de choque e jogadores agressivos. Murderball interroga os nossos conceitos de força e fraqueza. Os jogadores deste desporto especial são recrutados entre vítimas de acidentes de viação, quedas graves e doenças neurológicas. São homens que partiram o pescoço ou a coluna e têm uma mobilidade reduzida de pernas e braços. Usam membros artificiais, chapas, parafusos, e há mesmo uma escala de incapacidades que é uma das regras do jogo e que eles referem pelas vértebras afectadas. Mas estes homens não aceitam que os tratem como "deficientes". Rejeitam a piedade e o sentimentalismo. São competitivos, quezilentos, tatuados e engatatões. Num jogo, parecerem aríetes contra os adversários, e quando vão a um prova olímpica um deles confessa que não quer mimos: "we're not going to get a hug; we're going for a fucking gold medal".E nós entretanto já vimos que eles sofrem horrores, que passaram anos até terem de novo vidas independentes, até conseguirem despir as calças sozinhos ou comer sopa sem ajuda, anos de fisioterapia, de gadgets tecnológicos, de apoio das famílias. Um homem conta que às vezes sonha que o seu corpo está inteiro e saudável como antigamente. Outro mostra uma fotografia antiga com as pernas vivas e ágeis. Outro ainda confessa que todos eles imaginam que um dia se levantam e andam, Lázaros recuperados depois de uma morte precipitada. Mas eles nunca mais andam, nunca mais terão a vida de antigamente. E a vida continua. Uma vida nova, modificada, mas tão digna como a de outros tempos.O filme dá especial atenção à vida sexual destes rapazes, porque é um assunto que desperta a curiosidade de toda a gente. As mulheres, depois de alguns rodeios, perguntam se eles ainda conseguem, se ainda estão vivos da cintura para baixo, se ainda são homens como dantes. E eles explicam que sim, que estão vivos, que conseguem, que funcionam, embora com técnicas especiais e posições diferentes. Alguns deles têm namoradas atraentes, que não os vêem de todo como pessoas defeituosas. O documentário escolhe atletas masculinos talentosos como prova de que a dignidade pessoal (de que a virilidade é uma dimensão) não fica diminuída por um acidente ou uma doença. Os fortes continuam fortes mesmo que os outros os considerem fracos. Um homem chamado Joe Soares explica a dada altura que deixou Portugal porque no seu país natal estar numa cadeira de rodas "é um sinal de fraqueza", e nós vemos depois que ele tem uma personalidade autoritária e impulsiva. O mesmo acontece com os soldados que os jogadores visitam nos hospitais, mutilados das guerras americanas que aos olhos das pessoas passaram de heróis a deficientes, de fortes e fracos, mas que continuam os bravos de sempre.A heroicidade dos homens retratados em Murderball é uma heroicidade quotidiana, de pequenos gestos e não de grandes feitos, de perseverança e coragem e confiança. Um homem forte não é aquele que vence: é aquele que resiste. Tal como um homem fraco não é aquele que perde mas aquele que desiste. Vemos aqueles dínamos humanos com cola não mãos porque não fecham bem os dedos, deslizando nas suas cadeiras de alumínio como quadrigas, vemos como suam e lutam, e sabemos que são homens fortes. E todos nós, que não desistimos apesar de nos terem partido tantas vezes o pescoço, estamos gratos ao seu exemplo.
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