Da relevância política da portaria da bolacha Maria!

PÚBLICO
09.09.2008, Helena Matos
Convém lembrar que não existe nada gratuito. A escolaridade em si mesma custa muitíssimo dinheiro aos portugueses
Se alguma vez tivéssemos de escolher um símbolo para a incontinência legislativa com que os sucessivos governos têm procurado melhorar a vida daqueles que definem como mais desfavorecidos creio que nada suplantaria a portaria da Bolacha Maria.
Dada à luz a 30 de Setembro de 1974, a dita portaria procurava aplicar os conceitos da luta de classe ao reino das bolachas e biscoitos, que é como quem diz criar um regime de preços máximos de venda para a bolacha Maria dado que esta, explicava o legislador, ao contrário de outros tipos de biscoitos, era consumida "em especial pelas classes de menores rendimentos". E assim, a 30 de Setembro de 1974, no preciso dia em que Spínola resignava e Costa Gomes era nomeado Presidente da República, um membro do Governo legislava impassível sobre os preços máximos da bolacha Maria e, em abono da verdade, diga-se também que da bolacha de água-e-sal e das tostas. Como o Governo caiu nesse mesmo dia, o legislador já não teve tempo para regulamentar sobre outros assuntos cruciais para a vida dos portugueses, tais como o universo burguês do sortido húngaro e quiçá estabelecer quotas de acesso ao bolo de arroz. Mas pode essa preclara alma dar-se por satisfeita: o argumento da defesa dos mais desfavorecidos, sobretudo se engalanado dumas vestes de progresso, justifica toda a legislação em Portugal, incida ela sobre as bandeiradas dos táxis, a data do início dos saldos ou a distância mínima a que, na pesca amadora, os pescadores devem deixar as respectivas canas umas das outras.
Tal como aconteceu no dia 30 de Setembro de 1974, muita desta legislação que se apresenta como uma correcção das injustiças - e admitindo que trincar bolacha Maria faz parte do rol dos direitos que cada um traz à nascença - nasce em momentos de grande crise, logo torna-se anedótico, quando não grotesco, cruzar essa legislação com os acontecimentos que a História regista desses mesmos dias: a 30 de Setembro de 1974, Portugal viveu uma das situações mais graves da sua História recente, mas tabelar a bolacha Maria surgiu como essencial a um membro do Governo de então. Infelizmente, esta esquizofrenia está longe de se restringir às dinâmicas revolucionárias - como aconteceu em 1974, em Portugal - sendo mesmo estrutural na elaboração das estratégias políticas dos partidos que fazem as democracias. O exemplo mais próximo desta linha de actuação é o actual Governo espanhol que, perante a ameaça duma grave crise económica, se entretém a anunciar como medidas fundamentais para os próximos meses a alteração à legislação sobre o aborto e o suicídio assistido, vulgo eutanásia. Um guião de humor negro não faria melhor, mas até agora esta agenda de fatalismo progressista tem conseguido preencher o vazio ideológico e proporcionar bons resultados eleitorais. Em Portugal também lá chegaremos, sendo que aos assuntos do costume ainda temos para adicionar a temática da regionalização, assunto mediaticamente precioso num país que, na prática, não consegue sequer actualizar o mapa das suas freguesias.
Por agora, e embora já em contagem decrescente para entrarmos nessas polémicas, o que ocupa as medidas sucessoras da portaria da bolacha Maria são os apoios escolares. Para este ano lectivo anunciam-se mais refeições gratuitas, mais livros gratuitos e um maior número de alunos abrangidos pelo princípio da gratuitidade. Em primeiro lugar conviria lembrar que não existe nada gratuito. E os primeiros a quem tal deve ser recordado são precisamente o Governo que se compraz, qual aristocrata caritativo, a anunciar tanta gratuitidade como àquelas organizações como o Fórum Não Governamental para Inclusão Social que nunca se sabe quem representam e muito menos o que fazem, mas que, imbuídas duma espécie de superioridade moral, exigem ciclicamente uma escolaridade obrigatória "realmente gratuita". Todos aqueles livros e demais material, além da própria escolaridade em si mesma, custam muitíssimo dinheiro aos portugueses.
Também às famílias o valor deste apoio deve ser recordado. Como aliás devia ser dado aos utentes o valor real de cada consulta num centro de saúde, dos tratamentos nos hospitais públicos, das refeições nas cantinas escolares, etc. Porque não só o gratuito não existe como muito provavelmente, ao transformá-lo numa espécie de prémio de presença para aqueles que agora se chamam carenciados, se está a contribuir para que estes não valorizem a escola. Seria, por exemplo, interessante avaliar, a meio do ano escolar, o estado de conservação e utilização de muitos destes livros e material supostamente gratuitos. Como também seria importantíssimo cruzar os dados destes apoios com os dos resultados escolares. Talvez então se percebesse que, na escolaridade obrigatória, a maior parte dos alunos não tem maus resultados por não ter material escolar ou os manuais. (No caso destes últimos, a sua ausência em algumas disciplinas, como o Português, seria até uma bênção!).
O melhor apoio escolar é uma escola que funcione bem, seja exigente com todos os seus alunos e não trate aqueles que rotula como mais pobres - e que nem sempre o são na realidade - como crianças de quem há menos a esperar, tanto no comportamento como na avaliação. E naturalmente uma escola que seja respeitada para o que é essencial que os seus alunos saibam que custa muito dinheiro. Logo é um privilégio poder frequentá-la sem pagar.
É fácil, à distância de três décadas e meia, concluir que, em Setembro de 1974, tabelar a bolacha Maria era absolutamente irrelevante perante os reais problemas que os portugueses enfrentavam então. Provavelmente o mesmo se vai dizer dentro de alguns anos de toda a parafernália que, ano a ano, se anuncia para combater o insucesso escolar, particularmente o insucesso dos filhos dos mais pobres. Mas até lá temos ainda muita bolacha Maria para trincar e muita legislação de apoio às "classes de menores rendimentos" para digerir. Jornalista

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