As démarches do poder
PÚBLICO,
25.09.2008,
Constança Cunha e Sá
Neste momento, só nos ocorre perguntar como é que tudo isto se tornou possível
Há uns anos, o actual líder parlamentar do PSD, Paulo Rangel, decidiu comemorar o 25 de Abril brindando a Assembleia da República com um discurso sobre a "claustrofobia democrática" que contaminava o país. Vivia-se ainda sob o signo das grandes reformas, onde um governo, empreendedor e decidido, se lançava com particular zelo contra os inúmeros grupos de privilegiados que batiam o pé à modernidade, entupindo o desenvolvimento da pátria e os grandiosos objectivos que guiavam o primeiro-ministro. Num dos cantos da oposição, o dr. Marques Mendes, desprovido do discurso e das causas do PSD, sem "jeito" para liderar um partido, como assegurava o dr. Júdice, do alto da sua sabedoria, limitava-se a confirmar a ausência de qualquer alternativa "credível" à maioria absoluta dos socialistas. Apesar de tudo, durante algum tempo, a "claustrofobia" vingou: transformou-se num tema de análise obrigatório e passou a fazer parte do vocabulário político.Este mês, nos Açores, a dra. Ferreira Leite, invocando o bom andamento dos "negócios", resolveu dizer que não havia democracia em Portugal. Os comentários não se fizeram esperar: fugindo ao essencial, ridicularizou-se o diagnóstico, falou-se das más práticas do PSD e, em vésperas de eleições regionais, puxou-se pelo exemplo da Madeira e pelos excessos do dr. Jardim. Sobre a actuação do Governo ou sobre a promiscuidade entre o poder político e os interesses económicos, nem uma palavra se ouviu. Dá ideia de que a "claustrofobia" denunciada pelo dr. Paulo Rangel, no meio dos maiores elogios, desapareceu, sem deixar marcas, numa democracia "fortalecida" pelos sucessivos abusos de qualquer partido que seja chamado a formar governo. As culpas de uns justificam os erros de outros num regime que se distingue pelos atropelos à liberdade e pelas imposições do poder.Perante este aprazível estado de coisas, é natural que os inquéritos feitos pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social sobre as interferências do poder político nos vários órgãos de informação dêem invariavelmente em nada. Nunca, em nenhum dos casos analisados, os conselheiros detectaram qualquer tipo de pressão sobre os jornalistas. Em última análise, porque a dita Entidade, conforme é explicado na sua deliberação sobre o processo da licenciatura do eng. Sócrates, se recusa a usar a palavra "pressão" alegando que esse termo "adquire uma conotação negativa" que supostamente não se coaduna com a natureza das suas investigações. Tendo em conta esta engenhosa metodologia, que exclui dos seus inquéritos qualquer facto desagradável (ou qualquer expressão com uma "conotação negativa") a ERC nunca poderá encontrar indícios ou provas daquilo que ela própria exclui à partida. Traduzindo por miúdos, e indo ao caso em apreço, como é que ERC poderia alguma vez detectar a existência de pressões por parte do eng. Sócrates ou dos seus assessores, se estas são, desde logo, higienicamente substituídas por démarches inofensivas? Os jornalistas bem podem assegurar que foram vítimas de pressões inadmissíveis; no pequeno universo da ERC essas pressões não existem - já que a sua própria enunciação tem "conotações negativas".No dossier sobre o processo de licenciatura do eng. Sócrates, a que o Expresso teve acesso, José Manuel Fernandes classificou como uma "pressão ilegítima a tentativa de evitar que as notícias saíssem". O director do PÚBLICO chegou a relatar, a título de exemplo, parte de uma conversa que teve, nessa altura, com o primeiro-ministro, citando, entre aspas, este significativo "aviso": "Fiquei com uma boa relação com o seu accionista [Paulo Azevedo] e vamos ver se isso não se altera." Para a ERC, que se recusa a utilizar termos com uma "conotação negativa", isto está longe de ser uma ameaça inaceitável por parte de um primeiro-ministro que é capaz de utilizar, junto do director de um jornal, a "boa relação" que tem com o seu accionista, jogando com as tais oportunidades de negócios de que a dra. Ferreira Leite falava. Em qualquer país civilizado uma situação como esta seria rigorosamente investigada e, caso se confirmasse, levaria inevitavelmente à demissão do primeiro-ministro. Em Portugal é uma démarche considerada "normal" que se encaixa serenamente "num certo grau de tensão" que existe nas "relações entre o poder político e os jornalistas".O facto de o Expresso só ter tido acesso ao dossier nove meses depois de a Comissão de Acesso aos Dados Administrativos ter ordenado à Entidade Reguladora para a Comunicação Social para divulgar o conteúdo do "processo Sócrates", levando uma especialista em Direito da Comunicação Social a afirmar que a entidade criada para assegurar "o livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa" agiu, neste caso, "como instrumento de impedimento da liberdade de informar e de ser informado" é a gota de água num processo que desacredita, de forma irremediável, a qualidade da nossa democracia. E quando um dos conselheiros, favorável à audição do primeiro-ministro, garante que foi alvo de "insultos, ameaças e intimidações" nas reuniões da ERC, só nos ocorre perguntar como é que tudo isto se tornou possível.
25.09.2008,
Constança Cunha e Sá
Neste momento, só nos ocorre perguntar como é que tudo isto se tornou possível
Há uns anos, o actual líder parlamentar do PSD, Paulo Rangel, decidiu comemorar o 25 de Abril brindando a Assembleia da República com um discurso sobre a "claustrofobia democrática" que contaminava o país. Vivia-se ainda sob o signo das grandes reformas, onde um governo, empreendedor e decidido, se lançava com particular zelo contra os inúmeros grupos de privilegiados que batiam o pé à modernidade, entupindo o desenvolvimento da pátria e os grandiosos objectivos que guiavam o primeiro-ministro. Num dos cantos da oposição, o dr. Marques Mendes, desprovido do discurso e das causas do PSD, sem "jeito" para liderar um partido, como assegurava o dr. Júdice, do alto da sua sabedoria, limitava-se a confirmar a ausência de qualquer alternativa "credível" à maioria absoluta dos socialistas. Apesar de tudo, durante algum tempo, a "claustrofobia" vingou: transformou-se num tema de análise obrigatório e passou a fazer parte do vocabulário político.Este mês, nos Açores, a dra. Ferreira Leite, invocando o bom andamento dos "negócios", resolveu dizer que não havia democracia em Portugal. Os comentários não se fizeram esperar: fugindo ao essencial, ridicularizou-se o diagnóstico, falou-se das más práticas do PSD e, em vésperas de eleições regionais, puxou-se pelo exemplo da Madeira e pelos excessos do dr. Jardim. Sobre a actuação do Governo ou sobre a promiscuidade entre o poder político e os interesses económicos, nem uma palavra se ouviu. Dá ideia de que a "claustrofobia" denunciada pelo dr. Paulo Rangel, no meio dos maiores elogios, desapareceu, sem deixar marcas, numa democracia "fortalecida" pelos sucessivos abusos de qualquer partido que seja chamado a formar governo. As culpas de uns justificam os erros de outros num regime que se distingue pelos atropelos à liberdade e pelas imposições do poder.Perante este aprazível estado de coisas, é natural que os inquéritos feitos pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social sobre as interferências do poder político nos vários órgãos de informação dêem invariavelmente em nada. Nunca, em nenhum dos casos analisados, os conselheiros detectaram qualquer tipo de pressão sobre os jornalistas. Em última análise, porque a dita Entidade, conforme é explicado na sua deliberação sobre o processo da licenciatura do eng. Sócrates, se recusa a usar a palavra "pressão" alegando que esse termo "adquire uma conotação negativa" que supostamente não se coaduna com a natureza das suas investigações. Tendo em conta esta engenhosa metodologia, que exclui dos seus inquéritos qualquer facto desagradável (ou qualquer expressão com uma "conotação negativa") a ERC nunca poderá encontrar indícios ou provas daquilo que ela própria exclui à partida. Traduzindo por miúdos, e indo ao caso em apreço, como é que ERC poderia alguma vez detectar a existência de pressões por parte do eng. Sócrates ou dos seus assessores, se estas são, desde logo, higienicamente substituídas por démarches inofensivas? Os jornalistas bem podem assegurar que foram vítimas de pressões inadmissíveis; no pequeno universo da ERC essas pressões não existem - já que a sua própria enunciação tem "conotações negativas".No dossier sobre o processo de licenciatura do eng. Sócrates, a que o Expresso teve acesso, José Manuel Fernandes classificou como uma "pressão ilegítima a tentativa de evitar que as notícias saíssem". O director do PÚBLICO chegou a relatar, a título de exemplo, parte de uma conversa que teve, nessa altura, com o primeiro-ministro, citando, entre aspas, este significativo "aviso": "Fiquei com uma boa relação com o seu accionista [Paulo Azevedo] e vamos ver se isso não se altera." Para a ERC, que se recusa a utilizar termos com uma "conotação negativa", isto está longe de ser uma ameaça inaceitável por parte de um primeiro-ministro que é capaz de utilizar, junto do director de um jornal, a "boa relação" que tem com o seu accionista, jogando com as tais oportunidades de negócios de que a dra. Ferreira Leite falava. Em qualquer país civilizado uma situação como esta seria rigorosamente investigada e, caso se confirmasse, levaria inevitavelmente à demissão do primeiro-ministro. Em Portugal é uma démarche considerada "normal" que se encaixa serenamente "num certo grau de tensão" que existe nas "relações entre o poder político e os jornalistas".O facto de o Expresso só ter tido acesso ao dossier nove meses depois de a Comissão de Acesso aos Dados Administrativos ter ordenado à Entidade Reguladora para a Comunicação Social para divulgar o conteúdo do "processo Sócrates", levando uma especialista em Direito da Comunicação Social a afirmar que a entidade criada para assegurar "o livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa" agiu, neste caso, "como instrumento de impedimento da liberdade de informar e de ser informado" é a gota de água num processo que desacredita, de forma irremediável, a qualidade da nossa democracia. E quando um dos conselheiros, favorável à audição do primeiro-ministro, garante que foi alvo de "insultos, ameaças e intimidações" nas reuniões da ERC, só nos ocorre perguntar como é que tudo isto se tornou possível.
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