Depois da mudança, só falta mudar!

PÚBLICO

12.09.2008, Graça Franco

Será que não se pode pedir a África que cumpra os requisitos democráticos com padrões europeus?

No 11 de Setembro estava em Bruxelas. Soube da notícia quando regressava do médico, naquele estado de graça especial que se vive quando se espera um filho e uma primeira ecografia confirma não apenas que ele existe mas que tudo está bem. Teria sido um dos dias mais felizes da minha vida não fora tê-lo passado depois, colada à televisão, na angústia partilhada com todos aqueles que assistiam ao desabar de um mundo que implodia ao brutal embate dos aviões nas duas Torres. Pairavam as ameaças de ataque às instalações da NATO, dias depois a escola internacional onde os meus filhos estudavam constava da lista de alvos potenciais e, nas semanas seguintes, todos aprendemos a integrar no nosso dia-a-dia estratégias de vigilância "anti-terrorista". Mil vezes pensei naquela tarde, e nos meses que ainda faltavam para ele nascer, que mundo era aquele onde iria crescer este meu filho.Ele entrou ontem na escola pela primeira vez. A 11 de Setembro. O mundo não está envolto no caos que há sete anos se temia. É verdade que temos agora múltiplos focos de tensão e novos poderes nucleares além da ameaça iraniana, assistimos ao esboroamento das grandes organizações internacionais (NATO e ONU) e a Europa continua sem defesa fingindo alegremente que ela existe. Mas, tudo somado, pode dizer-se que o Mundo está apenas infinitamente mais perigoso, infinitamente mais difícil de compreender e com o litro do petróleo preso por fios à barreira dos 100 dólares. Isto é, perigosamente caro enquanto "o litro de democracia" (de que aqui falava ontem o Miguel Gaspar) parece agora perigosamente barato em certas zonas do globo. Na Europa faz-se cada vez mais vista grossa aos novos ditadores e tratam-se com pinças temas como o das eleições em Angola. Temem-se os humores do líder da Venezuela. O simples valor da Paz tornou-se tão alto que ninguém cora de vergonha ao classificar como "transparente", "livre" e "democrático" o escrutínio que ratificou o poder do MPLA com uns confortáveis 82 por cento. Gostava de saber se quem o considerou assim também o considera "justo" e era capaz de aplicar os mesmos critérios de avaliação que aplicou a Angola, retroactivamente a Portugal e às eleições de antes do 25 de Abril, correndo o risco de absolver Salazar e o colocar na lista dos democratas ao lado de Eduardo dos Santos. Dir-se-á que a UNITA acabou por reconhecer a vitória e a impossibilidade de alterar os resultados e os observadores internacionais não foram além de uns quantos reparos balbuciados com pezinhos de lã. Mas não importa como se chegou ali? Não é sinal claro de falta de transparência e de um patológico medo da verdade o visto negado a uma série de jornalistas de grandes órgãos de comunicação portugueses e o veto de gaveta de que foram alvo outros tantos? Estavam lá outros 150 jornalistas estrangeiros. Não interessa o critério de escolha? Ou a África nunca se pode pedir que cumpra os requisitos democráticos com padrões europeus? Pensava eu que essa era a raiz da argumentação colonialista. O coração dos democratas bate debaixo das respectivas carteiras. E nas carteiras pesa a dependência. Os grandes dão-se conta que são vulneráveis. E novos grandes ameaçam também, finalmente, querer mandar no Mundo. A China celebrou nos seus esplendorosos Jogos Olímpicos a entrada numa nova era e o resto do mundo prestou-lhe prestimosa vassalagem. Não respeita os direitos humanos? Mas compra os nossos produtos ou, se ainda não compra, pode vir a comprar. O poder de Pequim espera assim, final e tranquilamente, poder ocupar "o lugar do meio" entre uma América fragilizada pela embrulhada de uma guerra que se arrasta e cujo prolongamento a torna praticamente perdida e uma Rússia que se estreia no poder do petróleo e do gás natural e, perante as novas ameaças, reergue a cabeça com uma força e sobranceria inesperadas.Ainda assim, sete anos passados não se verificou o pior. Apenas interiorizámos a certeza de que o futuro será muito provavelmente pior. E enquanto metade do globo arregaça as mangas envoltas num inusitado optimismo, o nosso Velho Mundo parece condenado a baixar os braços numa onda de desânimo sem precedentes. Igual na economia. A incerteza está sentada à mesa do nosso orçamento. E veio para ficar.O comissário europeu Almunia (na quarta-feira anunciou para a Europa um crescimento igual a metade do registado em 2007!) dizia que não é possível fazer previsões nos tempos que correm. Trichet, em entrevista à SIC Notícias, insistia que nunca se comprometeria com a divulgação de "tendências" de actuação, nem descidas, nem subidas de juros tidas por garantidas. Lembrava apenas que em cada momento agiria sempre de forma a impedir a temida espiral inflacionista. Isto que significa? Que, se esse for considerado como o remédio adequado, não hesitará em aumentar de novo as taxas de juro, já de si altíssimas na Europa. E porque haverá de ser ainda o remédio adequado? Não terá o doente criado amplas resistências ao "antibiótico"? Eis a pergunta sem resposta.Mas o velho líder do BCE parece sofrer o defeito de muitos dos seus compatriotas: exibe uma notável incapacidade de compreender um mundo que foge a todas as cartilhas e receitas do passado. A Europa, tal como a velha França, mostra-se amarrada às velhas certezas e não parece sequer aceitar a ideia de que talvez elas já não cheguem para nos sossegar. O fantasma da espiral preços-salários já várias vezes empobreceu a Europa e continua a povoar os pesadelos dos alemães, a assustar os eurocratas e parece impedir-nos de identificar outros perigos que espreitam no horizonte. Deixámos de confiar nos médicos e a desconfiança "mata" e empobrece-nos ainda mais depressa do que a inflação.Falta ambição para testar alternativas e a economia ameaça tornar-se um sistema de inevitabilidades. Mesmo se a inevitabilidade é o oposto da própria ciência económica, baseada no exercício sistemático da escolha das melhores alternativas. Não haverá escolha se apenas existir um caminho a seguir disciplinadamente. Como já alguém disse, nesse caso não estaremos então perante um problema económico; estaremos, quando muito, perante uma tragédia.Se a quisermos evitar, talvez não seja má ideia perder o medo à mudança e aceitar com serenidade os seus riscos. E, já agora, aproveitando a onda de Obamania europeia, talvez possamos acrescentar ao risco a convicção de que "Sim, nós podemos!" geri-lo, ultrapassá-lo, vencê-lo. Se alguma coisa de positivo podemos retirar do 11 de Setembro foi o facto de ele ter, de facto, introduzido a incerteza como o dado mais certo do problema. O mundo estava a precisar que lhe abanassem as certezas da cartilha neoliberal. Não para nos precipitarmos a deitá-la ao lixo sem lhe reconhecer alguns dos seus méritos, mas para que nos empenhássemos activamente em procurar alternativas para pôr cobro a muitos dos seus escandalosos defeitos. É hora. Por cá, esta criatividade reclama-se já no próximo Orçamento, a par da coragem q.b de resistir ao apelo de quatro eleições. Jornalista

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