E terá os teus olhos (sobre Cesare Pavese)
PÚBLICO 13.09.2008, Pedro Mexia
Cesare Pavese nasceu há um século, a 9 de Setembro de 1908. E ainda hoje é impossível distinguir os seus livros e a sua vida. A angústia que se exprime naqueles romances pausados e brutais, naqueles contos suaves e desesperados, naqueles poemas narrativos ou estilhaçados, é uma angústia que traduz experiências vividas com uma intensidade feroz que não se esquece.Pavese nasceu no campo e foi educado na cidade. Viveu fascinado pela terra e os camponeses, ao mesmo tempo que cultivava uma intensa ligação à vida citadina, colmeia de gente anónima entre arcadas e esplanadas. Órfão de pai na primeira infância e de mãe aos vinte e poucos, a infância é motivo recorrente nos seus textos. Desde pequeno que Cesare se revelou tímido e melancólico, e esse feitio como que justifica a lassidão entristecida das suas narrativas (às vezes rasgada por súbitas tragédias). Em matéria política sabemos que Pavese cresceu rodeado de amigos antifascistas mas sem vocação militante; já depois da guerra, sentiu uma espécie de remorso por não ter sido resistente e inscreveu-se no Partido Comunista. Sempre demonstrou grande empatia pelos operários e camponeses, nas suas dificuldades e na sua simplicidade. O campo, para Pavese, tinha aliás uma dimensão edénica. Ele dava grandes passeios ao domingo ao longo do rio Pó, nadava e remava, gostava da paisagem de colinas e vinhedos. Quando teve uma época de inquietação religiosa, viu na natureza a chave mitológica da realidade.E houve, acima de tudo, Tina Pizzardo, a quem chamava "a mulher de voz rouca". Não foi a única rapariga que Pavese amou, mas em torno dela construiu a sua imagem e o seu destino. Pouco à vontade com as mulheres, Pavese foi acumulando ansiedades e frustrações. No liceu, esperou em vão por uma rapariga com quem tinha marcado um encontro, e quando ela não apareceu caiu de cama três meses. Durante a guerra, manteve uma relação involuntariamente casta ao longo de cinco anos. E com Tina viveu um episódio marcante: Pavese serviu de intermediário postal entre ela e o namorado, um preso político, e isso custou-lhe a prisão e o exílio no Sul da Itália. Aguentou a provação quase com orgulho. Após uma amnistia, regressou a Turim à procura de Tina. Mas quando chegou descobriu que ela tinha casado com outro. A vida de Pavese depois disso (1936) teve sempre como ponto de referência esse golpe: "(...) tinha encontrado o caminho da salvação. Apesar de toda a fraqueza que existia em mim, aquela pessoa sabia ligar-me a uma disciplina, a um sacrifício, com a simples dádiva de si. (...) Porque, abandonado a mim próprio, já o sei por experiência, tenho a certeza de não vencer. Unido a ela, numa só carne e num só destino, conseguiria, tenho a certeza absoluta. Até mesmo por causa da minha cobardia: a meu lado, essa mulher teria sido um imperativo. // Em vez disso, o que ela fez! Talvez não o saiba, ou, se o sabe, não lhe interessa. E é justo, porque ela é ela e tem o seu passado que lhe traça o futuro".Houve outros fracassos, mas ele reconduzia tudo a essa ferida narcísica ou invocava uma suposta "impotência" (ejaculação precoce, na verdade). Pavese amava as mulheres que o desprezavam. E desprezava as mulheres que o amavam. Sofria com as fortes. E aborrecia-se com as fracas. Em 1950, conhece a actriz americana Constance Dowling (na foto), com quem tem um caso que dura umas semanas; depois, ela arranja outro homem. É a última gota. Pavese explicou: "Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada". O pungente diário Il mestiere di vivere, que ele deixou em cima da mesa no dia em que se suicidou, está cheio destas páginas de auto-análise masoquista. De pura e simples mutilação. O diário regista os seus combates pela necessidade de expressão e pela necessidade de contacto humano. Não há dúvida que fracassou na segunda, ele que apenas queria uma felicidade comezinha e conjugal. É verdade que na literatura triunfou, e ainda em 1950 o romance La bela estate ganhou o Strega, um dos mais importantes prémios italianos; mas a literatura sem mais nada é coisa nenhuma. A 27 de Agosto de 1950, Pavese desistiu. Semanas antes, tinha escrito um poema em que dizia que a morte virá e terá os teus olhos.
Cesare Pavese nasceu há um século, a 9 de Setembro de 1908. E ainda hoje é impossível distinguir os seus livros e a sua vida. A angústia que se exprime naqueles romances pausados e brutais, naqueles contos suaves e desesperados, naqueles poemas narrativos ou estilhaçados, é uma angústia que traduz experiências vividas com uma intensidade feroz que não se esquece.Pavese nasceu no campo e foi educado na cidade. Viveu fascinado pela terra e os camponeses, ao mesmo tempo que cultivava uma intensa ligação à vida citadina, colmeia de gente anónima entre arcadas e esplanadas. Órfão de pai na primeira infância e de mãe aos vinte e poucos, a infância é motivo recorrente nos seus textos. Desde pequeno que Cesare se revelou tímido e melancólico, e esse feitio como que justifica a lassidão entristecida das suas narrativas (às vezes rasgada por súbitas tragédias). Em matéria política sabemos que Pavese cresceu rodeado de amigos antifascistas mas sem vocação militante; já depois da guerra, sentiu uma espécie de remorso por não ter sido resistente e inscreveu-se no Partido Comunista. Sempre demonstrou grande empatia pelos operários e camponeses, nas suas dificuldades e na sua simplicidade. O campo, para Pavese, tinha aliás uma dimensão edénica. Ele dava grandes passeios ao domingo ao longo do rio Pó, nadava e remava, gostava da paisagem de colinas e vinhedos. Quando teve uma época de inquietação religiosa, viu na natureza a chave mitológica da realidade.E houve, acima de tudo, Tina Pizzardo, a quem chamava "a mulher de voz rouca". Não foi a única rapariga que Pavese amou, mas em torno dela construiu a sua imagem e o seu destino. Pouco à vontade com as mulheres, Pavese foi acumulando ansiedades e frustrações. No liceu, esperou em vão por uma rapariga com quem tinha marcado um encontro, e quando ela não apareceu caiu de cama três meses. Durante a guerra, manteve uma relação involuntariamente casta ao longo de cinco anos. E com Tina viveu um episódio marcante: Pavese serviu de intermediário postal entre ela e o namorado, um preso político, e isso custou-lhe a prisão e o exílio no Sul da Itália. Aguentou a provação quase com orgulho. Após uma amnistia, regressou a Turim à procura de Tina. Mas quando chegou descobriu que ela tinha casado com outro. A vida de Pavese depois disso (1936) teve sempre como ponto de referência esse golpe: "(...) tinha encontrado o caminho da salvação. Apesar de toda a fraqueza que existia em mim, aquela pessoa sabia ligar-me a uma disciplina, a um sacrifício, com a simples dádiva de si. (...) Porque, abandonado a mim próprio, já o sei por experiência, tenho a certeza de não vencer. Unido a ela, numa só carne e num só destino, conseguiria, tenho a certeza absoluta. Até mesmo por causa da minha cobardia: a meu lado, essa mulher teria sido um imperativo. // Em vez disso, o que ela fez! Talvez não o saiba, ou, se o sabe, não lhe interessa. E é justo, porque ela é ela e tem o seu passado que lhe traça o futuro".Houve outros fracassos, mas ele reconduzia tudo a essa ferida narcísica ou invocava uma suposta "impotência" (ejaculação precoce, na verdade). Pavese amava as mulheres que o desprezavam. E desprezava as mulheres que o amavam. Sofria com as fortes. E aborrecia-se com as fracas. Em 1950, conhece a actriz americana Constance Dowling (na foto), com quem tem um caso que dura umas semanas; depois, ela arranja outro homem. É a última gota. Pavese explicou: "Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada". O pungente diário Il mestiere di vivere, que ele deixou em cima da mesa no dia em que se suicidou, está cheio destas páginas de auto-análise masoquista. De pura e simples mutilação. O diário regista os seus combates pela necessidade de expressão e pela necessidade de contacto humano. Não há dúvida que fracassou na segunda, ele que apenas queria uma felicidade comezinha e conjugal. É verdade que na literatura triunfou, e ainda em 1950 o romance La bela estate ganhou o Strega, um dos mais importantes prémios italianos; mas a literatura sem mais nada é coisa nenhuma. A 27 de Agosto de 1950, Pavese desistiu. Semanas antes, tinha escrito um poema em que dizia que a morte virá e terá os teus olhos.
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