As pensoes e a bolsa

PÚBLICO, 29.09.2008, António Bagão Félix

O secretário-geral do PS lança um anátema sobre os mercados e abusa da ignorância geral sobre estas matérias

No comício de Guimarães, o secretário-geral do PS, José Sócrates, disse, no agora estilo venezuelano, que, ao contrário da direita, não permitirá que as pensões sejam "jogadas na Bolsa".
Sei que em ambiente de comício devemos dar algum desconto ao que se diz. Mas, tratando-se do líder socialista que é também chefe do Governo, é desejável esperar algum cuidado, sobretudo quando são abordados temas tão sensíveis como são as pensões dos portugueses e o mercado de capitais.
Ora, a afirmação produzida, no meio do deslumbramento mediático de que tanto gosta, é perigosa, primária e politicamente pouco honesta.
Ninguém até hoje propôs um regime de pensões baseado na pura capitalização, nem mesmo na dita direita política tratada, aliás, pelo SG do PS como um todo monolítico. O que sempre se propôs, embora com cambiantes, é que uma parte complementar das pensões pudesse ser gerada fora do sistema público. A Lei de Bases da SS de 2003, entretanto revogada pelo executivo, estipulava tão-só a possibilidade (que não a obrigatoriedade) de, acima de um determinado salário, se poder descontar para um regime privado. Há dois anos, o PSD falava na possibilidade de parte dos descontos poder ser encaminhada para um regime de capitalização e o CDS retomou a proposta de opting-out parcial e complementar. O próprio PS, através do Governo Guterres no qual Sócrates era ministro, legislou prevendo essa opção depois de acolher a proposta do Livro Branco da Segurança Social de Correia de Campos. Aliás, os regimes complementares de capitalização existem em quase todos os países da União Europeia, em particular no Reino Unido e, desde há anos, na tão socialista Suécia, sem que se ouvisse um dislate destes e sem que as pensões nestes países estejam em causa.
Por outro lado, José Sócrates finge ignorar as sérias vulnerabilidades económicas e demográficas do actual modo de financiamento das pensões através da chamada repartição, o que, aliás, tem conduzido a uma diminuição real das prestações sociais. Nenhum método de financiamento é imune a riscos (mercado, demografia, economia) e daí as vantagens da sua conjugação.
E - pior - ignora ou finge ignorar que, para o cálculo e segurança do valor das pensões, se tem que considerar longos períodos de 30 ou 40 anos e não analisar apenas um instante ou mesmo um ciclo económico. É tão irresponsável dizer que a capitalização é um logro porque se está num período de crise, como igualmente é dizer o contrário, isto é enaltecer em excesso este regime, porque se está num dado momento de euforia bolsista.
Demagógica e perigosamente, procurou lançar a ideia da total perversão do mercado de capitais, deixando-se inebriar pelo fascínio mediático de tomar a nuvem por Juno e de, consequentemente, dar a entender ao comum dos mortais que no mercado financeiro tudo é maldito e semelhante ao jogo de roleta de casino.
Foi incoerente porque assim como fala tão criticamente do "jogo da bolsa" tem lançado OPV e privatizações na mesmíssima bolsa que agora diaboliza, fazendo entusiasticamente a apologia do sucesso e do futuro promissor das "aventureiras" empresas.
Foi ainda incoerente porque "esquece" que no nosso regime público de pensões há - e bem - o Fundo de Estabilização Financeira que lhe serve de almofada de segurança a médio e longo prazos e que, funcionando em regime de capitalização, "joga na Bolsa", para utilizar a expressão de Sócrates. Este fundo atingia em Dezembro do ano passado 7,560 mil milhões de euros, dos quais 1,5 mil milhões investidos nos EUA e Japão, além do investido em offshore (!) como, há meses, o Governo reconheceu custosamente. Curiosa ironia: a de ser um fundo de capitalização (pelos vistos, odiosa para o PM) a garantir alguma segurança no pagamento das futuras pensões do Estado!
Mais: gostaria de saber por que razão o Governo institui os chamados PPR públicos (para descontos entre 2 a 6% dos salários) que também investem em títulos de bolsa? E por que razão estes certificados de reforma não têm as regras de solvência e supervisão que se exigem no mercado? E por que razão previu o Governo a contratualização da sua gestão com entidades do sector privado? E por que se voltaram a dar incentivos para a compra de PPR dos bancos e seguradoras que também jogam na maldita bolsa? E por que diminuíram (até retroactivamente) as condições de remuneração dos tão conservadores certificados de aforro empurrando os aforradores para outras alternativas, incluindo a "roleta bolsista"?
O secretário-geral do PS quis fazer surf na perigosa onda da crise que assola os mercados monetários e financeiros. De leitura apressada e análise precipitada, lança um anátema geral sobre os mercados, atira-se não à doença e suas causas mas ao mercado em si, ignora a sua obrigação de não contribuir para minar a confiança, tem o mau gosto de fazer politiquice interna à custa do que se passa lá fora, abusa da ignorância geral sobre estas matérias. Corre o risco da prancha lhe cair em cima.
Economista. Ministro da Segurança Social e do Trabalho do XV Governo e ministro das Finanças do XVI Governo

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