Dos crimes de faca e alguidar aos comportamentos disruptivos das pesso@s inseridas no arquipélago ZATO
Público, 02.09.2008, Helena Matos
O principal objectivo do agente que nos atende quando queremos apresentar uma queixa é explicar que não vale a pena
Durante décadas, jornal que se prezasse jamais trataria do problema que hoje designamos como violência doméstica. O que acontecia portas adentro só era notícia nos casos de homicídio. No dia em que este ocorria, aquelas mulheres e crianças, quotidianamente sovadas, acabavam a ser ainda caricaturadas, quais galinhas sangradas para cabidela, como personagens das chamadas "notícias de faca e alguidar". O tempo fez o seu trabalho e os crimes de faca e alguidar ganharam uma designação decente - violência doméstica - e passaram a ser denunciados. Por ironia, durante outro largo período, era a agressão de que se podia falar. Os outros crimes, à excepção dos fiscais, mantinham-se no reduto da faca e alguidar, a que agora se juntava o anátema do populismo e doutros "ismos" ainda mais terríveis como o racismo.Paulatinamente, para tratar do roubo e agressões foi-se instituindo uma novilíngua. As notícias sobre crimes não são bem notícias mas sim teses sobre comportamentos disruptivos. De quem? Das pesso@s ou seja aqueles seres sem cor, nem deus ou sexo. Este apagamento levou por exemplo a que só após os atentados do 11 de Setembro se identificassem como fundamentalistas islâmicos os autores de inúmeros crimes contra mulheres praticados na Europa. Já em Portugal, alguns dos órgãos de comunicação que identificam sem qualquer problema a comunidade cigana como uma vítima da pobreza omitiram, em meados deste ano, a pertença cigana dos alegados exploradores duma rede que terá escravizado centenas de pessoas com debilidades psíquicas. E não raramente quando se referem confrontos em bairros sociais, opta-se por incluir logo no título uma justificação sociológica, designando-os como bairros problemáticos, habitados por pessoas com fracos rendimentos, enfim os habitantes do nosso arquipélago ZATO. Para os mais esquecidos talvez seja esta a hora de recordar (Geórgia oblige) que o arquipélago ZATO era a rede de cidades secretas onde a defunta URSS desenvolvia a sua tecnologia nuclear. Oficialmente o arquipélago ZATO não existia. Logo muito menos existiam problemas em ZATO. Donde só se conseguir entrever o que aí ocorria lendo nas entrelinhas de textos que aparentemente nada tinham a ver com o nuclear: por exemplo, o grande acidente na central da cidade secreta de Chelyabinsk, em 1957, foi em parte confirmado através da leitura de artigos sobre couves, musgos e afins em revistas de botânica e agronomia da URSS.Cada sociedade tem o seu arquipélago ZATO com a respectiva rede de cidades fechadas e temas tabu. O nosso é constituído por este emaranhado de preconceitos ideológicos em torno do crime. À semelhança do que sucedia no ZATO original, também aqui as crises colocam em causa a seriedade dos números. Estes não medem a realidade. Constroem-na. Daí a actual discussão em torno do número de queixas. Quem já tentou apresentar uma queixa por agressão ou roubo sabe bem como os números estão longe de corresponder à realidade: o principal objectivo do agente que preenche os formulários indispensáveis à apresentação da queixa é explicar que aquilo não leva a nada. Aliás, um dos sinais evidentes da degradação das forças policiais é esta crescente vocação para amanuense dos agentes. Atrás dum balcão ninguém os sova nem processa e se forem bem sucedidos ainda conseguem demover uma parte significativa dos potenciais queixosos. Não por caso, um dos momentos mais significativos da crise na justiça aconteceu este ano na esquadra de Moscavide. Esta foi invadida por um grupo de pessoas que procuravam agredir um homem que ali fora precisamente apresentar queixa deles. Em qualquer lugar do mundo democrático uma esquadra pode ser invadida, o que não é normal é que o facto tenha sido subestimado e sobretudo que ninguém se tenha interrogado sobre o que fez o homem cuja segurança não fora garantida dentro da esquadra: pura e simplesmente desistiu de apresentar queixa.Neste Verão muito provavelmente não ocorreram mais crimes. Simplesmente, a natureza de alguns desses crimes levou a que a realidade emergisse para grande incómodo dos zeladores do arquipélago de tabus em que até agora têm mantido o assunto acantonado. Nas suas declarações à TSF o que preocupava Leonel Carvalho, responsável pelo Gabinete Coordenador de Segurança e Criminalidade? Nem a segurança nem a criminalidade - matérias sobre as quais dizia nada poder adiantar - mas sim as notícias que, na sua opinião, fomentam "o sentimento de insegurança das pessoas, o que também não é positivo". Em ZATO tudo corria bem enquanto as notícias assim o garantiram. E por cá também assim tem sido. Antigamente mandavam-se circulares para os jornais "proibindo relatos e comentários muito extensos e pormenorizados sobre crimes considerados repugnantes" como fez, em 1929, o governo de então quando confrontado com o facto de numa aldeia de Portugal, Lagarinhos, um homem ter sido linchado. Agora arranjam-se uns gabinetes, observatórios, ONG e cientistas sociais que sobre o crime dizem nada mas sabem muito bem como devem ser feitas as notícias para que as suas estatísticas continuem a ser a nossa verdade. À cautela e até que a novilíngua volte a funcionar enchem-se os noticiários com uns polícias de viseira e o aparato de operações especiais. As imagens são eficazes - e o nosso ZATO bem precisa dumas boas imagens - mas pouco têm a ver com combate ao crime e ao sentimento de impunidade. Esse está lá, na solidão daquele homem que, na esquadra de Moscavide, concluiu que o melhor era tratar da sua vida e desistir de apresentar queixa. a "Sobreviventes e ignorados: Dois relatórios oficiais, nunca tornados públicos, contam como os portugueses sobreviveram aos massacres do Norte de Angola, em 1961, abandonados por Salazar" - assim começa uma reportagem sobre os ataques às fazendas, em Angola, no ano de 1961, publicada pelo semanário Expresso, no passado fim-de-semana. Esse ataque contra civis, fossem eles brancos ou pretos, em que os atacantes, longe de apresentarem qualquer reivindicação de carácter político, se limitaram a violar, queimar e esventrar quem lhes apareceu pela frente, particularmente as mulheres, as crianças e os trabalhadores bailundos (a fotografia do Expresso é, apesar da sua violência, ainda assim das menos terríveis), foi uma data mais difícil para os portugueses do que para o salazarismo. Este último soube tirar dividendos políticos deste ataque, mesmo que isso implicasse, como implicou, não questionar a atitude negligente do governo português perante a segurança dos seus cidadãos e também enterrar rapidamente e em força os testemunhos do que sucedera a 15 de Março de 1961.Infelizmente, estes portugueses não foram apenas ignorados por Salazar. Eles foram também vexados pela democracia. Por mais grotesco que tal possa parecer, um governo português entendeu por bem fazer do dia 15 de Março de 1961, data do início do massacre nas fazendas, um dia que Angola devia festejar. Em Fevereiro de 1975, ou seja muito antes da independência de Angola e numa fase em que o governo português nomeava ministros para o governo de transição de Angola, em que o Conselho de Estado, reunido em Portugal, determinava que o alto-comissário designado para Angola teria "categoria e honras idênticas às do primeiro-ministro do Governo Português", achou o nosso governo apropriado e honroso que o dia 15 de Março de 1961 integrasse o calendário dos feriados de Angola, na qualidade de data festiva. Confesso que não sei o suficiente de História Universal para garantir que é inédito este gesto de os governantes, militares e civis, dum país assinarem um decreto que transforma em dia de glória a data em que os seus cidadãos foram massacrados, mas tenho a certeza de que, em matéria de colonização e descolonização, os grandes crimes dos portugueses não constam apenas dos "relatórios oficiais, nunca tornados públicos" e que começam agora, felizmente, a sair do segredo e da poeira dos arquivos. Os crimes estão também aí diante dos nossos olhos, onde aliás sempre estiveram: na linguagem burocrático-enfatuada dos decretos que enchem diários e boletins oficiais.
O principal objectivo do agente que nos atende quando queremos apresentar uma queixa é explicar que não vale a pena
Durante décadas, jornal que se prezasse jamais trataria do problema que hoje designamos como violência doméstica. O que acontecia portas adentro só era notícia nos casos de homicídio. No dia em que este ocorria, aquelas mulheres e crianças, quotidianamente sovadas, acabavam a ser ainda caricaturadas, quais galinhas sangradas para cabidela, como personagens das chamadas "notícias de faca e alguidar". O tempo fez o seu trabalho e os crimes de faca e alguidar ganharam uma designação decente - violência doméstica - e passaram a ser denunciados. Por ironia, durante outro largo período, era a agressão de que se podia falar. Os outros crimes, à excepção dos fiscais, mantinham-se no reduto da faca e alguidar, a que agora se juntava o anátema do populismo e doutros "ismos" ainda mais terríveis como o racismo.Paulatinamente, para tratar do roubo e agressões foi-se instituindo uma novilíngua. As notícias sobre crimes não são bem notícias mas sim teses sobre comportamentos disruptivos. De quem? Das pesso@s ou seja aqueles seres sem cor, nem deus ou sexo. Este apagamento levou por exemplo a que só após os atentados do 11 de Setembro se identificassem como fundamentalistas islâmicos os autores de inúmeros crimes contra mulheres praticados na Europa. Já em Portugal, alguns dos órgãos de comunicação que identificam sem qualquer problema a comunidade cigana como uma vítima da pobreza omitiram, em meados deste ano, a pertença cigana dos alegados exploradores duma rede que terá escravizado centenas de pessoas com debilidades psíquicas. E não raramente quando se referem confrontos em bairros sociais, opta-se por incluir logo no título uma justificação sociológica, designando-os como bairros problemáticos, habitados por pessoas com fracos rendimentos, enfim os habitantes do nosso arquipélago ZATO. Para os mais esquecidos talvez seja esta a hora de recordar (Geórgia oblige) que o arquipélago ZATO era a rede de cidades secretas onde a defunta URSS desenvolvia a sua tecnologia nuclear. Oficialmente o arquipélago ZATO não existia. Logo muito menos existiam problemas em ZATO. Donde só se conseguir entrever o que aí ocorria lendo nas entrelinhas de textos que aparentemente nada tinham a ver com o nuclear: por exemplo, o grande acidente na central da cidade secreta de Chelyabinsk, em 1957, foi em parte confirmado através da leitura de artigos sobre couves, musgos e afins em revistas de botânica e agronomia da URSS.Cada sociedade tem o seu arquipélago ZATO com a respectiva rede de cidades fechadas e temas tabu. O nosso é constituído por este emaranhado de preconceitos ideológicos em torno do crime. À semelhança do que sucedia no ZATO original, também aqui as crises colocam em causa a seriedade dos números. Estes não medem a realidade. Constroem-na. Daí a actual discussão em torno do número de queixas. Quem já tentou apresentar uma queixa por agressão ou roubo sabe bem como os números estão longe de corresponder à realidade: o principal objectivo do agente que preenche os formulários indispensáveis à apresentação da queixa é explicar que aquilo não leva a nada. Aliás, um dos sinais evidentes da degradação das forças policiais é esta crescente vocação para amanuense dos agentes. Atrás dum balcão ninguém os sova nem processa e se forem bem sucedidos ainda conseguem demover uma parte significativa dos potenciais queixosos. Não por caso, um dos momentos mais significativos da crise na justiça aconteceu este ano na esquadra de Moscavide. Esta foi invadida por um grupo de pessoas que procuravam agredir um homem que ali fora precisamente apresentar queixa deles. Em qualquer lugar do mundo democrático uma esquadra pode ser invadida, o que não é normal é que o facto tenha sido subestimado e sobretudo que ninguém se tenha interrogado sobre o que fez o homem cuja segurança não fora garantida dentro da esquadra: pura e simplesmente desistiu de apresentar queixa.Neste Verão muito provavelmente não ocorreram mais crimes. Simplesmente, a natureza de alguns desses crimes levou a que a realidade emergisse para grande incómodo dos zeladores do arquipélago de tabus em que até agora têm mantido o assunto acantonado. Nas suas declarações à TSF o que preocupava Leonel Carvalho, responsável pelo Gabinete Coordenador de Segurança e Criminalidade? Nem a segurança nem a criminalidade - matérias sobre as quais dizia nada poder adiantar - mas sim as notícias que, na sua opinião, fomentam "o sentimento de insegurança das pessoas, o que também não é positivo". Em ZATO tudo corria bem enquanto as notícias assim o garantiram. E por cá também assim tem sido. Antigamente mandavam-se circulares para os jornais "proibindo relatos e comentários muito extensos e pormenorizados sobre crimes considerados repugnantes" como fez, em 1929, o governo de então quando confrontado com o facto de numa aldeia de Portugal, Lagarinhos, um homem ter sido linchado. Agora arranjam-se uns gabinetes, observatórios, ONG e cientistas sociais que sobre o crime dizem nada mas sabem muito bem como devem ser feitas as notícias para que as suas estatísticas continuem a ser a nossa verdade. À cautela e até que a novilíngua volte a funcionar enchem-se os noticiários com uns polícias de viseira e o aparato de operações especiais. As imagens são eficazes - e o nosso ZATO bem precisa dumas boas imagens - mas pouco têm a ver com combate ao crime e ao sentimento de impunidade. Esse está lá, na solidão daquele homem que, na esquadra de Moscavide, concluiu que o melhor era tratar da sua vida e desistir de apresentar queixa. a "Sobreviventes e ignorados: Dois relatórios oficiais, nunca tornados públicos, contam como os portugueses sobreviveram aos massacres do Norte de Angola, em 1961, abandonados por Salazar" - assim começa uma reportagem sobre os ataques às fazendas, em Angola, no ano de 1961, publicada pelo semanário Expresso, no passado fim-de-semana. Esse ataque contra civis, fossem eles brancos ou pretos, em que os atacantes, longe de apresentarem qualquer reivindicação de carácter político, se limitaram a violar, queimar e esventrar quem lhes apareceu pela frente, particularmente as mulheres, as crianças e os trabalhadores bailundos (a fotografia do Expresso é, apesar da sua violência, ainda assim das menos terríveis), foi uma data mais difícil para os portugueses do que para o salazarismo. Este último soube tirar dividendos políticos deste ataque, mesmo que isso implicasse, como implicou, não questionar a atitude negligente do governo português perante a segurança dos seus cidadãos e também enterrar rapidamente e em força os testemunhos do que sucedera a 15 de Março de 1961.Infelizmente, estes portugueses não foram apenas ignorados por Salazar. Eles foram também vexados pela democracia. Por mais grotesco que tal possa parecer, um governo português entendeu por bem fazer do dia 15 de Março de 1961, data do início do massacre nas fazendas, um dia que Angola devia festejar. Em Fevereiro de 1975, ou seja muito antes da independência de Angola e numa fase em que o governo português nomeava ministros para o governo de transição de Angola, em que o Conselho de Estado, reunido em Portugal, determinava que o alto-comissário designado para Angola teria "categoria e honras idênticas às do primeiro-ministro do Governo Português", achou o nosso governo apropriado e honroso que o dia 15 de Março de 1961 integrasse o calendário dos feriados de Angola, na qualidade de data festiva. Confesso que não sei o suficiente de História Universal para garantir que é inédito este gesto de os governantes, militares e civis, dum país assinarem um decreto que transforma em dia de glória a data em que os seus cidadãos foram massacrados, mas tenho a certeza de que, em matéria de colonização e descolonização, os grandes crimes dos portugueses não constam apenas dos "relatórios oficiais, nunca tornados públicos" e que começam agora, felizmente, a sair do segredo e da poeira dos arquivos. Os crimes estão também aí diante dos nossos olhos, onde aliás sempre estiveram: na linguagem burocrático-enfatuada dos decretos que enchem diários e boletins oficiais.
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