DE CÉSAR E DE DEUS
Diário de Notícias, 20080918
Maria José Nogueira Pinto
Jurista
O último congresso da Pastoral Social Católica trouxe, de novo, para cima da mesa, a questão do relacionamento entre o Estado e os milhares de instituições de inspiração cristã que desenvolvem em Portugal, diariamente, uma decisiva intervenção social.Convém lembrar que na área da Solidariedade Social (e ao contrário do que é a tradição na Saúde e na Educação, sistemas nos quais o Estado se assumiu como principal prestador) os sucessivos governos optaram por contratualizar as redes de serviços sociais já existentes, a das Misericórdias e a das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), ambas ligadas à Igreja Católica. Dir-se-ia uma opção razoável, uma vez que o Estado deve ser garante mas não necessariamente prestador de serviços e esta "parceria" com o privado social sem fins lucrativos, para além de gerar ganhos de eficiência para o Estado, pode proporcionar, aos mais carenciados, serviços de qualidade através de redes de implantação nacional e de forte proximidade aos cidadãos.Nem sempre uma boa ideia tem uma praxis correcta. Hoje temos, por um lado, um Estado que regulamenta em excesso, financia abaixo dos custos e fiscaliza como e quando lhe convém, e por outro, um elevado número de organizações que ao abrigo de uma subcontratação sofrem os solavancos dos ciclos políticos, a descontinuidade das políticas públicas, os ónus da contratação laboral, a responsabilidade de milhares e milhares de cidadãos que o Estado lhes transfere, ao mesmo tempo que as subfinancia, impedindo qualquer sustentabilidade e lhes vai tolhendo, pouco a pouco, a sua identidade e liberdade de agentes sociais caritativos e desinteressados. É que, ao contrário do Estado, a Igreja desde sempre cuidou dos pobres, dos doentes, dos desamparados, por motivos que se prendem com os próprios fundamentos do cristianismo, com a missão evangélica, com a caridade, maior virtude teóloga. Mas se sempre foi assim no Reino de Deus, não foi sempre assim no reino de César, no qual não existe o mesmo imperativo e cuja função é - como compete - puramente política. As políticas públicas têm, aliás, sido marcadas por formas de intervenção social desfasadas da realidade, fragmentadas, pautadas por uma perigosa conjugação entre "modismos" importados de fora e uma tendência para a distribuição acrítica, por pouco controlável, de subsídios pecuniários em vez de um investimento sério nas pessoas. O financiamento destas políticas é feito com as sobras de cada Orçamento do Estado, pelo que a sustentabilidade dos diferentes programas torna-se duvidosa.O efeito negativo de tudo isto está reflectido nos nossos medíocres indicadores sociais, tornando-se mais dramático em momentos de crise como o que estamos a viver. E só não é explosivo porque Misericórdias e IPSS prosseguem, dia após dia e em todo o País, um enorme trabalho de atendimento e de cuidados em creches, centros de acolhimento, lares de idosos, no apoio domiciliário, em centros para deficientes, etc... nos quais o Estado comparticipa insuficientemente.Ao contrário do que sucede no Reino de Deus onde o despudor e a impunidade não são aceitáveis, no reino de César os governos podem ser despudorados e ficarem impunes... E assim se vai andando, com os responsáveis puxando os cordelinhos nos momentos mais tácticos, como os períodos pré-eleitorais, ou quando a pobreza se torna mediática.Considerando a dimensão da Economia Social no nosso país e a força real deste Terceiro Sector, a postura do Estado, equívoca e incerta, é geradora de conflitos e dificulta o objectivo comum do combate à pobreza e à exclusão. É urgente resolver este equívoco, o que passa por uma carta de princípios que salvaguarde o núcleo de valores identitários da intervenção social cristã e a negociação de uma verdadeira parceria que estabeleça, com clareza e estabilidade, direitos e deveres mútuos.Se já pagamos, através dos nossos impostos, o tributo a César, e se não queremos ser cúmplices de uma política social do silêncio e da dependência, é tempo de reflectir se não estaremos, nesta falsa parceria, a dar a César o que é de Deus.
Maria José Nogueira Pinto
Jurista
O último congresso da Pastoral Social Católica trouxe, de novo, para cima da mesa, a questão do relacionamento entre o Estado e os milhares de instituições de inspiração cristã que desenvolvem em Portugal, diariamente, uma decisiva intervenção social.Convém lembrar que na área da Solidariedade Social (e ao contrário do que é a tradição na Saúde e na Educação, sistemas nos quais o Estado se assumiu como principal prestador) os sucessivos governos optaram por contratualizar as redes de serviços sociais já existentes, a das Misericórdias e a das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), ambas ligadas à Igreja Católica. Dir-se-ia uma opção razoável, uma vez que o Estado deve ser garante mas não necessariamente prestador de serviços e esta "parceria" com o privado social sem fins lucrativos, para além de gerar ganhos de eficiência para o Estado, pode proporcionar, aos mais carenciados, serviços de qualidade através de redes de implantação nacional e de forte proximidade aos cidadãos.Nem sempre uma boa ideia tem uma praxis correcta. Hoje temos, por um lado, um Estado que regulamenta em excesso, financia abaixo dos custos e fiscaliza como e quando lhe convém, e por outro, um elevado número de organizações que ao abrigo de uma subcontratação sofrem os solavancos dos ciclos políticos, a descontinuidade das políticas públicas, os ónus da contratação laboral, a responsabilidade de milhares e milhares de cidadãos que o Estado lhes transfere, ao mesmo tempo que as subfinancia, impedindo qualquer sustentabilidade e lhes vai tolhendo, pouco a pouco, a sua identidade e liberdade de agentes sociais caritativos e desinteressados. É que, ao contrário do Estado, a Igreja desde sempre cuidou dos pobres, dos doentes, dos desamparados, por motivos que se prendem com os próprios fundamentos do cristianismo, com a missão evangélica, com a caridade, maior virtude teóloga. Mas se sempre foi assim no Reino de Deus, não foi sempre assim no reino de César, no qual não existe o mesmo imperativo e cuja função é - como compete - puramente política. As políticas públicas têm, aliás, sido marcadas por formas de intervenção social desfasadas da realidade, fragmentadas, pautadas por uma perigosa conjugação entre "modismos" importados de fora e uma tendência para a distribuição acrítica, por pouco controlável, de subsídios pecuniários em vez de um investimento sério nas pessoas. O financiamento destas políticas é feito com as sobras de cada Orçamento do Estado, pelo que a sustentabilidade dos diferentes programas torna-se duvidosa.O efeito negativo de tudo isto está reflectido nos nossos medíocres indicadores sociais, tornando-se mais dramático em momentos de crise como o que estamos a viver. E só não é explosivo porque Misericórdias e IPSS prosseguem, dia após dia e em todo o País, um enorme trabalho de atendimento e de cuidados em creches, centros de acolhimento, lares de idosos, no apoio domiciliário, em centros para deficientes, etc... nos quais o Estado comparticipa insuficientemente.Ao contrário do que sucede no Reino de Deus onde o despudor e a impunidade não são aceitáveis, no reino de César os governos podem ser despudorados e ficarem impunes... E assim se vai andando, com os responsáveis puxando os cordelinhos nos momentos mais tácticos, como os períodos pré-eleitorais, ou quando a pobreza se torna mediática.Considerando a dimensão da Economia Social no nosso país e a força real deste Terceiro Sector, a postura do Estado, equívoca e incerta, é geradora de conflitos e dificulta o objectivo comum do combate à pobreza e à exclusão. É urgente resolver este equívoco, o que passa por uma carta de princípios que salvaguarde o núcleo de valores identitários da intervenção social cristã e a negociação de uma verdadeira parceria que estabeleça, com clareza e estabilidade, direitos e deveres mútuos.Se já pagamos, através dos nossos impostos, o tributo a César, e se não queremos ser cúmplices de uma política social do silêncio e da dependência, é tempo de reflectir se não estaremos, nesta falsa parceria, a dar a César o que é de Deus.
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