Crónica sem tema

PÚBLICO 26.09.2008, Graça Franco

A ERC existe apenas para atazanar o juízo de empresas e jornalistas ou serve também para defender o cidadão indefeso?

Fiquei sem crónica. Há dias assim. Foi quarta de manhã. Limite dos limites para conseguir um bom tema, devidamente "virgem" no panorama "cronístico" nacional, estruturado q.b. e susceptível de ser tratado em seis mil caracteres e naquelas quatro a cinco horas que se prolongam entre as dez da noite e as três da madrugada de quinta-feira (dia D do envio deste texto para publicação neste jornal). Andava eu, como sempre, coligindo material criteriosamente, dia após dia, exemplo atrás de exemplo, na esperança de conseguir arrasar o regulador com a minha argumentação, forçando-o a lançar-se numa cruzada cívica pela limpeza do nosso espaço audiovisual, e eis senão quando, zás! Fiquei sem tema.
Tinha até já a preciosa opinião de um universitário insuspeito de qualquer conservadorismo (o professor Manuel Pinto da Universidade do Minho) que, num notável texto do digital Página 1 de terça-feira, já analisava a questão e a cuja argumentação pensava recorrer para tornar mais sólida a minha tese, expurgando-a de qualquer animosidade em relação à acção reguladora, por mim criticada, de forma quiçá excessiva, desde a peregrina ideia da sua criação, ainda nos te=mpos de desvario do governo do dr. Morais Sarmento.
O prof. Pinto goza do prestígio académico reservado às figuras que conseguem um precioso mix entre natural sabedoria/cultura e bom senso, tornando-o dificilmente atacável. Isso garantia um pluralismo de pontos de vista sempre útil nestas coisas que mexem com senso comum, interpretação do quadro legal disponível e função da regulação.
Para cúmulo tinha até discretamente corrido o risco de utilizar o Meo colectivo, cá de casa, para gravar às escondidas (e ver à socapa e a desoras...) o programa. Evitava desta forma o embaraço de ser apanhada por uma das crianças a ver, em pleno horário nobre, um "concurso" onde ao concorrente, e estando presente a respectiva família (pais, sogros, filhos, amigos e rancho folclórico lá da freguesia), em vez de se perguntar "qual é o preço daquela máquina de lavar?" ou "quantas sílabas tem a palavra a-nal-fa-be-to?" ou ainda "quantos rios cruzam a cordilheira dos Andes?" ou, nas versões mais cultas tipo RTP2, "quais os rios do hemisfério Norte, em que as águas fluem, nos dias de intenso calor, no sentido este-noroeste?" se perguntam coisas muito mais excitantes do estilo "por 250 mil euros seria capaz de manter relações homossexuais?" ou "já traiu o seu marido?" (sentado... a vê-la, contorcendo-se na esperança de que com um "sim!" você acabe de conseguir "sacar" mais uns euros...) ou "já teve vergonha dos seus pais?" (veremos se, com a sua resposta, sobrevivem a um ataque cardíaco, ideal para aumentar ainda mais a audiência...) ou ainda, aquela pérola, "já bateu na sua mulher?" (a ver se é desta que alguém sai do estúdio directamente para os calabouços da PJ devidamente enquadrado por dois polícias de bigode retorcido, por ter confessado, "no ar", um crime público). Azar! Neste caso o homem foi salvo pelo gongo de uma filha em clímax de angústia.
Pois, dizia eu, tinha até já gravado discretamente o programinha para não ter de explicar a ninguém que aquele telelixo estava gravado com estritos fins de realização de um trabalho científico sobre o estado a que isto chegou... andava por isso eu neste afã e... zás. Abro o JN e que vejo eu? Um textinho glosando o mesmo tema, exibindo grosso modo o mesmo argumentário, espelhando o mesmo nojo miudinho pela coisa, a mesma visceral repulsa, o mesmo asco pela exploração escandalosa dos mais frágeis.
Pior. O dito poderia ser assinado por alguém que a contragosto eu pudesse citar, ao jeito magnânimo de quem, embora utilizando uma ou outra bengalinha intelectual originária dos neurónios de outro, não está disposto a abdicar da produção intelectual própria sobre o tema.
Mas quem assinava o dito? Nada mais, nada menos, que o dr. Azeredo Lopes. Ele mesmo. O presidente do órgão regulador. Última instância de apelo nestas matérias.
E aqui está o dilema: ainda que a minha argumentação pudesse ser brilhante, o texto ficou automaticamente sem fim. Como é sabido, um texto com começo e sem fim é simplesmente impublicável e, ainda que o não fosse, sem um belo e suculento fim, qualquer prosa é simplesmente um fracasso.
O dr. Manuel Pinto pode terminar o seu artigo de forma clara e brilhante: "O limiar do bom senso e do bom gosto não pode ser diverso conforme se trate de figurões ou de zés-ninguéns. Mas é mais grave quando a ambição da fama ou da riqueza leva algumas pessoas a passar por cima da sua própria dignidade e da dignidade dos seus. Aí é ao canal que cabe intervir. E, se o não faz - e está à vista que o não faz -, é à audiência e a quem cabe o poder regulador. Calar é consentir."
Eu imaginava um fim mais modesto, no estilo positivo do "resta-nos uma esperança... que a ERC não cale! E mostre finalmente que existe, não apenas para atazanar o juízo de empresas e jornalistas, mas para defender o cidadão indefeso dos abusos de poder de quem não tem outra referência ética para além de uma sórdida política de audiências e que, sem olhar aos fins, abusa dos meios que são propriedade de todos nós" (o espaço audiovisual é público e cedido pelo Estado em simples concessão!).
Mas eis que até esta modéstia se torna tonta perante a prévia declaração de impotência do visado. Afirma Azeredo Lopes para que fique registado: "É minha convicção, pelo menos numa análise inicial, que o programa O Momento da Verdade não viola a lei. É também minha convicção que a lei não deve proibir este ou programas congéneres [os tais que o autor considerava linhas antes que se dedicavam a "uma forma simbólica de prostituição"!]. Mas não estou menos convicto de que isso não me impede de dizer o que penso, até com veemência, sobre aquela coisa."
Ou seja, garante o regulador, enquanto "regulado", estar convicto não dever coarctar a sua própria liberdade de expressão. Menos mal, nos tempos de hoje a dúvida é a tal ponto legítima que o próprio teve necessidade de a esclarecer com os seus próprios botões.
Sinto-me assim livre para fazer meus os seus argumentos: "O que me incomoda profundamente no programa (...) é a circunstância de ali se assistir à exploração da parte mais fraca e até indefesa."
"A defesa dos direitos fundamentais de outrem não é moralista nem deixa de ser, não é de esquerda ou de direita. Não é sequer, em sentido lato, ideológica. Radica antes na convicção de que, numa sociedade democrática, plural e aberta, a defesa da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e, como no caso, da liberdade de programação da SIC não impõe o silêncio." Nem mais.
E o texto segue num lamento (assumindo-se o autor como "certamente antiquado" e pedindo por isso desculpa aos seus leitores). Quase apetece consolá-lo. Quem sabe, talvez enquanto intelectual (despida a veste de regulador) possa o professor juntar a sua voz a outras (entre os quais modestamente me incluo), e sejamos capazes de pressionar os seus colegas de conselho para que sugiram ao legislador a alteração da lei. E, quem sabe, se consegue, no futuro, que um outro regulador, sucedendo-lhe no cargo, possa efectivamente regular este mercado selvático onde programas como este vão minando a solidez do tecido social, desprezando a dignidade humana, rebaixando o clima sociocultural do estado a que isto cada dia, mais e mais, já chegou!
Jornalista

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