A crise e o capitalismo
PÚBLICO
20.09.2008, Vasco Pulido Valente
Não há nada pior do que meia ignorância; e a comparação histórica é o refúgio por excelência da meia ignorância. Quem compara procura um exemplo ou um modelo e fica a julgar que, de certa maneira, compreende. Mesmo se a comparação for absurda e o modelo errado, o território parece conhecido. Já não se anda inteiramente cego por um sarilho inteiramente novo. A "manchete" do Diário de Notícias de terça-feira era a seguinte: "A pior crise desde 1929." Pior ou não, a crise de 2008 não tem ponto comum com a de 1929. O mundo era diferente: o mundo político, o mundo económico, o mundo financeiro. A catástrofe de 1929 não podia suceder em 2008 ou a de 2008 em 1929. A invocação do abismo serve sobretudo para atemorizar os velhinhos (de longa memória) e para dar aos contemporâneos que leram um livro um certo sentido das proporções - de resto, falso.E serve também, como serviu na altura (1929, claro), para ressuscitar a condenação do capitalismo (ou do "liberalismo", como lhe chamam hoje). Quem se atreve a defender um sistema que leva, e continua a levar, à miséria milhões de inocentes? Quem acredita na "Mão Invisível"? Quem se opõe agora à ingerência do Estado? Mas principalmente - pergunta a virtude - quem ganha com a desgraça alheia? Especuladores, banqueiros, gente sem nome de transnacionais perversas. Vejam o retrato do diabo-tipo (autoria de José Miguel Júdice): o "bom selvagem ("vestido com fatos de marca"), excitado "por cocaína" e por "champanhe vintage", por "charutos", pelo inevitável "manequim" (alta e loura) e por "carros velozes". Perante isto, só almas muito duras não chorarão pelos trabalhadores ou, se preferirem, pelos "desfavorecidos" - já que o proletariado, pobre dele, desapareceu.Chegou a crise final do capitalismo? Talvez não e por três razões. Primeiro, porque os críticos do capitalismo se habituaram pouco a pouco, se não à cocaína, a fatos de marca, a champanhe vintage, a charutos, a manequins (de qualquer forma ou espécie) e a carros de luxo. Segundo porque, apesar do fervor de Bush e de Condoleezza Rice, a Rússia de Putin, conservadora e nacionalista, não assusta tanto como a URSS "revolucionária" de Estaline. E terceiro, porque o petróleo vem precisamente do islão, o "inimigo" perfeito. Ainda por cima a crise de 2008 (ao contrário da crise de 1929) é uma crise global e o capitalismo um modo de vida global, em que nenhum Estado felizmente manda e de que nenhum Estado ganha em se isolar. A retórica "socializante" não passa de uma caricatura patética de uma época morta e enterrada.
20.09.2008, Vasco Pulido Valente
Não há nada pior do que meia ignorância; e a comparação histórica é o refúgio por excelência da meia ignorância. Quem compara procura um exemplo ou um modelo e fica a julgar que, de certa maneira, compreende. Mesmo se a comparação for absurda e o modelo errado, o território parece conhecido. Já não se anda inteiramente cego por um sarilho inteiramente novo. A "manchete" do Diário de Notícias de terça-feira era a seguinte: "A pior crise desde 1929." Pior ou não, a crise de 2008 não tem ponto comum com a de 1929. O mundo era diferente: o mundo político, o mundo económico, o mundo financeiro. A catástrofe de 1929 não podia suceder em 2008 ou a de 2008 em 1929. A invocação do abismo serve sobretudo para atemorizar os velhinhos (de longa memória) e para dar aos contemporâneos que leram um livro um certo sentido das proporções - de resto, falso.E serve também, como serviu na altura (1929, claro), para ressuscitar a condenação do capitalismo (ou do "liberalismo", como lhe chamam hoje). Quem se atreve a defender um sistema que leva, e continua a levar, à miséria milhões de inocentes? Quem acredita na "Mão Invisível"? Quem se opõe agora à ingerência do Estado? Mas principalmente - pergunta a virtude - quem ganha com a desgraça alheia? Especuladores, banqueiros, gente sem nome de transnacionais perversas. Vejam o retrato do diabo-tipo (autoria de José Miguel Júdice): o "bom selvagem ("vestido com fatos de marca"), excitado "por cocaína" e por "champanhe vintage", por "charutos", pelo inevitável "manequim" (alta e loura) e por "carros velozes". Perante isto, só almas muito duras não chorarão pelos trabalhadores ou, se preferirem, pelos "desfavorecidos" - já que o proletariado, pobre dele, desapareceu.Chegou a crise final do capitalismo? Talvez não e por três razões. Primeiro, porque os críticos do capitalismo se habituaram pouco a pouco, se não à cocaína, a fatos de marca, a champanhe vintage, a charutos, a manequins (de qualquer forma ou espécie) e a carros de luxo. Segundo porque, apesar do fervor de Bush e de Condoleezza Rice, a Rússia de Putin, conservadora e nacionalista, não assusta tanto como a URSS "revolucionária" de Estaline. E terceiro, porque o petróleo vem precisamente do islão, o "inimigo" perfeito. Ainda por cima a crise de 2008 (ao contrário da crise de 1929) é uma crise global e o capitalismo um modo de vida global, em que nenhum Estado felizmente manda e de que nenhum Estado ganha em se isolar. A retórica "socializante" não passa de uma caricatura patética de uma época morta e enterrada.
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