O Crucifixo
Chegou a nossa casa, depois de uma operação de desmantelamento que a minha sogra conduziu na casa de uma tia que adoeceu e teve que ir viver para um lar. Os artigos religiosos temos por hábito aceitar sempre. Algumas imagens foram para os nossos amigos padres da paróquia de Alverca e Ele ficou ali em cima da cómoda das tralhas, no corredor. Nunca lhe demos importância, esbatia-se no cenário. Mas dali nunca saiu. Permanecia dia a dia, a ver-nos passar.
Era Junho, e o nosso filho Pedro estava gravemente doente nos cuidados intensivos do Hospital de Santa Maria. Os tratamentos eram necessários e torturantes. Dia após dia, assistimos a um horror que permitimos na indiscutível certeza de que ele não nos pertence mas é nos confiado. À medida que esses dias difíceis passavam, o corredor da nossa casa foi aumentando, cada passo até à porta de saída de casa era mais pesado e mais difícil de dar. Invadia-me uma desesperança que tornava impossível a minha saída de casa para o voltar a encontrar naquelas circunstâncias.
Cheguei a meio do corredor e encontrámo-nos. Beijei-o.
Não me é hábito este tipo de expressões. Além do madeiro na Páscoa e do menino no Natal, não tinha nunca beijado uma imagem.
Agora que finalmente dava por ele, percebi que a cómoda onde estava apoiado enfrentava o quarto do Pedro e a sua cama.
Hoje, tem lugar de destaque na nossa casa, num cantinho de oração que montámos, e que o pai disse ainda a semana passada que tinha ficado muito bem.
Na noite em que o pai se entregou, ajoelhei-me à sua frente, como faço tantas vezes agora, e segurei-o com força, lembrando o Papa João Paulo II, totalmente apoiado, uma bengala para a fragilidade extrema com que viveu os seus últimos tempos. Se largasse, caía.
A vida é assim, parece-me.
Ou a cruz, ou o abismo.
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