O Silêncio da Certeza

JOÃO CÉSAR DAS NEVES   18/10/2016

O Pedro era um homem de poucas palavras. Para aqueles que, como eu, não o conheciam na intimidade, aquilo que mais se destacava no Pedro era o seu sorriso silencioso. Era um sorriso sereno, sólido, enraizado numa certeza.
O seu silêncio dizia mais que muitos discursos. Porque a tranquilidade do Pedro não vinha de ter uma vida calma, despreocupada. Além das terríveis lutas pela vida e pela Igreja em que todos andávamos envolvidos, e que tantos suportavam com angústia e alarde, todos sabíamos que o Pedro tinha grandes sofrimentos na vida. Todos sabíamos que o Pedro sofria mais que nós. Por isso o seu silêncio era tão eloquente.
O silêncio sorridente do Pedro não podia vir da vida. Tinha de vir da raiz da vida. Tinha de vir daquilo que o firmava, que o estabilizava, apesar de todas essas tempestades. O Pedro sofria como nós. O Pedro sofria mais do que nós. Mas o Pedro não barafustava, não se alvoroçava, não disparatava como nós. Por isso o silêncio do Pedro nos dizia tanta coisa.
Esse silêncio vinha do fundo, vinha daquela certeza que o prendia e segurava no meio dos terríveis embates que sofria. Por isso nós, ao vermos o Pedro, sentíamos claramente a sua certeza. Aquela certeza, a única certeza que pode segurar um homem nessas circunstâncias tão terríveis. O que mais se ouvia no Pedro era o seu silêncio.
Até que um dia o Pedro criou «O Povo», um blog de intervenção. E aí o Pedro começou a falar. Deixou de ser silencioso e falou. Falou muito. Falou sempre. Falou a todos. Aí ouvimos mais o Pedro do que tínhamos ouvido qualquer um de nós, apesar de nós barafustarmos, alvoroçarmos, disparatarmos tanto. Os textos de referência, os pilares da intervenção, a orientação de fundo eram da sua autoria. Aquelas «notas da redacção», onde o Pedro explicava o que acontecia, como via o que acontecia, eram da sua autoria. N’O Povo, o Pedro falou.
No Povo, nós passámos a ouvir o Pedro. E muita gente, mesmo gente que nunca conhecera o Pedro, começou a ouvir o que o Pedro tinha a dizer. Através d’O Povo, o Pedro foi ouvido em todo o lado. Os textos marcantes do blog eram do seu autor. Eles definiam um juízo sereno, sólido, enraizado numa certeza. Mais uma vez se ouvia a certeza. Desta vez não no silêncio, mas na leitura electrónica. A voz do Pedro multiplicou-se pelo mundo.
Os textos que o Pedro escrevia, porém, constituíam uma pequena parte daquilo que O Povo publicava. A esmagadora maioria do blog era escrito por outros. N’O Povo falava o povo. Falava o povo que se opõe à massa. Nesse blog o Pedro deu, sobretudo, voz a muitos outros. Por isso, até n’O Povo, aquilo que mais se ouvia do Pedro era o seu silêncio. O silêncio do editor que fazia falar os outros.
Só que, no meio das inúmeras vozes que se ouviam n’O Povo, se sentia por detrás o silêncio do seu autor. Porque as escolhas daquilo que saía eram sempre do Pedro. Esse era o seu valor inestimável. As pessoas iam ao Povo para ver aquilo que o Pedro tinha escolhido nesse dia. Era esse o valor d’O Povo. Era menos o que se lia que o que fora escolhido. Era uma escolha inteligente, interpelante, provocadora. Citava muitos amigos. Mas também muitos estranhos, só porque valia a pena ler. E até um ocasional adversário quando, por uma vez, dissera algo que valesse a pena. N’O Povo não havia uma única voz, que dissesse sempre as mesmas coisas. Havia muitas vozes diferentes. Não havia uma massa, havia um povo. Um povo que tinha coisas valiosas e interessantes a dizer. Coisas que traduziam aquela certeza que, mais uma vez, cintilava. Cintilava através do silêncio do Pedro.
Deste modo, O Povo era como um grande mosaico. Um mosaico de textos, todos diferentes, todos colados uns aos outros, como pedras num conjunto. Um mosaico que, na sua totalidade de inúmeras pedrinhas, compunha um desenho. Um desenho da face do Pedro. Porque era ele que, no seu silêncio, fornecia a linha condutora do blog. Também no blog aquilo que mais se ouvia era o silêncio do Pedro. Um silèncio mais eloquente que nunca.
Certamente que o Pedro fica zangado comigo por eu dizer que O Povo desenhava a face dele. Porque não era essa a face que ele queria desenhar. Aquilo que ele queria que o mosaico d’O Povo desenhasse era a sua certeza. A face que ele desenhava n’O Povo, a face que ele desenhava com a sua escolha silenciosa, com a sua escolha sorridente dos textos d’O Povo  era a face de Cristo. Era essa a certeza que o guiava; era Ele que o Pedro queria apresentar no Povo. Mas era Cristo através do Pedro. Por isso não está errado dizer que era a face do Pedro que víamos no mosaico d’O Povo, porque o Senhor disse: «Quem vos ouve é a mim que ouve» (Lc 10, 16).
A última vez que o silêncio do Pedro nos falou foi na sua morte. Nessa morte súbita, inesperada, cruel. Ele estava preparado para ela. Estava preparado graças àquela certeza que o guiava e que nós conhecíamos através do seu sorriso silencioso. Mas nós não estávamos preparados. Para nós foi um choque terrível. E por isso chorámos, barafustámos, alvoroçámo-nos. E o Pedro respondeu, como sempre, com o seu silêncio. Um silêncio eloquente, que nos ensina muito acerca da certeza que nos tem de guiar. A morte do Pedro, súbita, inesperada, cruel, disse-nos muito sobre a nossa própria morte. Ensinou-nos muito sobre a nossa vida, as nossas lutas, o nosso fim. Por isso, mais uma vez, na sua morte, o Pedro tinha muito a dizer-nos. Sempre pelo seu silêncio.

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