Poder fundamentalista

João César das Neves
DN 2016.02.04

As questões da família são evidentemente decisivas em qualquer sociedade. Quando a respectiva legislação vem controlada por forças fanáticas, o desastre fica inevitável. Isto é precisamente o que acontece em Portugal, agora de forma tão despudorada que até incomoda alguns dos próprios partidários.
Fundamentalismo não é ter ideias claras e extremas. É tentar impô-las aos outros através de qualquer forma de agressão. Que neste campo as nossas instituições estão controladas por fanáticos vê-se logo pelo radicalismo do discurso oficial. Por exemplo nas discussões acerca da homossexualidade, como no recente caso da adopção, só parecem admissíveis duas alternativas: quem não aceitar a igualdade total e integral de coisas obviamente diferentes é acusado de homofobia e violação de direitos.
Esta dicotomia extremada em tema tão sensível chega para mostrar o sectarismo. Existe, sem dúvida, um grave crime de homofobia, o fundamentalismo de quem violenta ou discrimina pessoas concretas. Mas o repúdio por essas agressões não implica a adopção da posição oposta, igualmente radical. Estes temas são complexos e ambíguos, e em todo o lado admitem várias posições e cambiantes. Na adopção não está em causa o direito do adoptante, que não existe, mas o interesse da criança. Numa sociedade livre, democrática e civilizada, precisamente por se tratar de questões profundas e decisivas, é indispensável reflexão, análise, discussão. Quando a posição extrema, aproveitando uma maioria ocasional, impõe o seu fanatismo em aspecto tão central, a sociedade deixa de ser livre, democrática e civilizada.
Outro sinal doentio vem da cavalgada imparável, onde os mais radicais triunfam sucessivamente, impondo posições crescentemente esdrúxulas. Os sucessivos compromissos e salvaguardas são arrogantemente descartados na ronda seguinte, passando por parvos os que neles confiaram. Mais uma vez, este caso da adopção por casais homossexuais mostra a estratégia em acção. Não se sabe se os responsáveis que criaram a Lei N.º 9/2010 de 31 de Maio, que igualava as uniões ao casamento, eram mentirosos ou tolos, mas o que não há dúvida é que as garantias na altura solenemente apresentadas ao país acerca da adopção de crianças revelam-se vácuas em pouco tempo.
A posição que hoje a lei impõe já contrasta claramente com aquilo que toda a humanidade, em todas as épocas, culturas e regiões, sempre defende. Mesmo em sociedades que permitiam o aborto, nunca se considerou um direito subsidiado pelo Estado. Até povos onde a homossexualidade era generalizada nunca tomaram essa relação equivalente ao casamento. Será que, para lá do grupinho de iluminados, toda a humanidade foi e é homofóbica? No campo da família e da vida, a Europa contemporânea, com Portugal na vanguarda, ocupa uma posição evidentemente aberrante, que já se mostra insustentável e será repudiada no futuro. Como hoje repudiamos outros extremismos anteriores.
Como é possível este domínio fundamentalista em assuntos basilares? Os episódios históricos de desvarios radicais, tão variados, têm sempre um elemento comum: a apatia da maioria. Aquilo que os extremistas apresentam como direitos inalienáveis não goza de apoio entre as pessoas sensatas e comuns, mas conta com o seu desinteresse. Tal como nas vitórias de jacobinos, bolcheviques, nazis ou jihadistas, o alheamento das massas é o principal cúmplice dos que pretendem demolir os pilares culturais da sociedade.
A aberração familiar nesta viragem de século servirá como triste fábula para as gerações vindouras. Deveria servir, desde já, para nós, pois o colapso é por demais evidente. Com taxas de fertilidade mais baixas do mundo, divórcios, depressões e suicídios a subir, casamentos em queda, os indicadores justificariam alarme, se as autoridades não sofressem da cegueira ideológica típica de fanáticos.
Existe, no entanto, aqui uma ironia: quanto mais abstruso, mais efémero será o resultado. Precisamente por serem fundamentalistas, os militantes não entendem que o seu método arrogante e precipitado, garantindo vitórias rápidas, torna-as muito frágeis. A vanguarda que descola acaba por romper. A história também mostra como no final o bom senso é sempre vencedor, mesmo se entretanto se causam muitas vítimas.
É verdade que elas já são evidentes mas ainda tem sido possível acusar a crise, ocultando sob motivos económicos o que é realmente um colapso moral e cultural. Quando a poeira assentar, ficarão bem marcadas as consequências desta triste experiência de poder fundamentalista.

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