Portugal em fanecas

João Taborda da Gama
DN 20151015
Como é que o PS conquistou o Bloco de Esquerda? Com uma cesta de peixe miúdo. Já nada desune os dois partidos. O eixo realidade-Bruxelas encarregar-se-á de fazer esquecer uma série de propostas orçamentais da esquerda do PS e do próprio PS, e António Costa parece estar a conseguir convencer Catarina Martins a deixar cair tudo o que é identitário no Bloco de Esquerda.
Na economia, já não vamos ter o "controlo público, nacionalização e redireccionamento do sistema bancário", nem a "propriedade estatal", nem "uma política de controlo público da propriedade bancária". Nem "uma política de nacionalização do setor da energia", nem "o controlo público sobre as empresas do setor", já nem "o capital público deve voltar a ser maioritário na Galp, na EDP e na REN", e muito menos assistiremos à "nacionalização da produção e distribuição da energia". Nem ninguém já pensa em "devolver à esfera pública as empresas privatizadas, concessionadas e subconcessionadas", ou sequer "renacionalizar as autoestradas originariamente construídas sem custos para o utilizador (Scut)". Nem se pense que a "a transportadora aérea nacional TAP deve continuar a ser o que é, uma empresa pública".
E hoje, no Bloco, já ninguém quer ouvir falar da "reestruturação da dívida" pública, nem da "reestruturação da dívida das empresas de transportes", nem, no que respeita à Madeira, de "um cancelamento de parte significativa da dívida e à reestruturação da mesma".
O Tratado Orçamental é para ficar, pois "a convocação de um referendo sobre o Tratado Orçamental" já não "é um passo essencial", porque o Bloco já não é "uma esquerda comprometida com a desobediência à austeridade e com a desvinculação do Tratado Orçamental", porque se fosse queria "referendar o Tratado Orçamental e iniciar um processo de reestruturação da dívida pública". Já longe vai o tempo em que se dizia que "um governo de esquerda assume o confronto com as atuais instituições europeias e prepara todas as consequências possíveis", tempos em que ainda se pensava que "só é possível inverter a política de austeridade rompendo com a lógica dos programas de ajustamento e do pacto de estabilidade". E longe vai o tempo em que "a clareza desse mandato (...) pode resultar num rompimento com a União Monetária" e "que os representantes eleitos do Bloco atuam em defesa de um caminho alternativo ao autoritarismo europeu". Se antes era verdade, é hoje mentira que "sob as atuais regras europeias (...) não é possível o controlo público da banca ou de indústrias, ou um programa para o pleno emprego. A menos que haja desobediência, em nome da soberania". E também não se diga que "o presente quadro só pode transformar-se pela mobilização popular que conduza à desobediência de um ou mais países - Grécia, Espanha, Portugal, Irlanda".
Nas relações internacionais, já não vamos ter a "saída da NATO e ação diplomática pela extinção deste e de todos os blocos militares", qual quê, nem a "denúncia do Acordo de Cooperação e Defesa entre os EUA e Portugal e consequente imposição de uma moratória aos EUA para que abandonem a Base das Lajes". Nem o Bloco de Esquerda irá "pugnar pelo encerramento de todas as bases militares estrangeiras na Europa". Nem o "fim das instituições da desregulação liberal, como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial". E muito menos é verdade que "o Bloco irá persistir em derrotar o Tratado Transatlântico (TTIP)". Tudo isto é passado.
E talvez o Bloco tenha exagerado quando disse que o Programa Eleitoral do PS, "mesmo com delírio otimista sobre a evolução económica, tem que manter a punição fiscal do trabalho, penaliza a Segurança Social e liberaliza o despedimento para obedecer aos critérios de Angela Merkel".
E o Presidente tem de nomear este governo da esquerda do PS, pois é o único que pode durar quatro anos porque o Bloco já não vai querer "criar o mecanismo de revogação de mandato executivo por vontade popular em caso de clara violação dos compromissos eleitorais assumidos".
Afinal era só jajão? Só só, não. O que fica de pé? António Costa tem de dar alguma coisita ao Bloco, e fontes bem informadas dizem que as pontes estão criadas para que se mantenha a proposta bloquista de "criação de um "cabaz de peixe" para venda direta de pescado variado, permitindo (...) a valorização e escoamento de algumas espécies com menos valor comercial e preços mais vantajosos para o consumidor". Disto ninguém abdica - e parece que Bruxelas está disposta a aceitar (desde que não vá ao défice), e o PCP também (desde que o preço seja tabelado). Os grupos técnicos dos dois partidos discutem já quais as espécies baratuchas a incluir no cabaz e os peixitos a excluir. Há dúvidas sobre a xaputa (sobretudo devido ao nome) e sobre a tainha (sobretudo devido ao baixo valor nutricional), mas a faneca é consensual no arco da constituição. Abaixo o queijo Limiano, viva o orçamento da faneca.
Nota: todas as citações entre aspas são retiradas do Manifesto Eleitoral do Bloco de Esquerda para as Legislativas 2015, apresentado em julho de 2015.

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