A hora negra do regime

PEDRO LOMBA Observador 26/10/2015
Ao ser mudada a regra de que quem ganha com maioria (relativa) afinal não governa, são os equilíbrios políticos entre a esquerda e a direita que sairão destroçados. Com isto regredimos anos e anos; e podemos regredir ainda mais.

A crise política que vivemos já causou danos profundos no nosso sistema político. Abalou, com consequências nesta altura imprevisíveis, a sã convivência entre instituições e partidos. E pode mesmo provocar a mais séria transformação do regime tal como tem sido entendido entre nós ao longo de 40 anos. O Presidente da República fez bem em recordar alguns desses aspectos. Quero aqui acrescentar outros.
a) A escolha para primeiro-ministro do líder da força política mais votada em eleições é uma regra. É uma convenção constitucional. É impreciso falar-se apenas de “tradição” ou “precedente”. Um regime político e um sistema de governo dependem, e muito, de convenções constitucionais, no nosso caso reconhecidas e seguidas pelos partidos há 40 anos. Modificar abruptamente a convenção contra a vontade de dois dos partidos com representação parlamentar, um dos quais o partido maioritário, só iria ferir os equilíbrios da nossa democracia e corromper as expectativas do eleitorado que, quando vota em eleições legislativas, vota também para definir quem governa, escolhendo ou rejeitando candidatos a primeiros-ministros. São tantos, na universidade ou nos jornais, os que têm defendido que assim é, e mais, que deve continuar a sê-lo. Veja-se, por exemplo, o constitucionalista Jorge Reis Novais: “as eleições parlamentares são cada vez mais, nos nossos dias e para a maioria dos eleitores, uma escolha do novo Governo, especialmente do novo Primeiro-Ministro”, pelo que “desde que o anterior Primeiro-Ministro – ou o partido que o apoia – se reapresente a eleições, o voto individual é determinado, para a maioria do eleitorado, por uma intenção de premiar ou sancionar a actuação desse Governo, renovando-lhe o mandato ou votando pelas alternativas das oposições”. Estamos de acordo.
b) Por isso, na nossa democracia que, como veremos, não é nem uma democracia de parlamentarismo puro e muito menos de governo de assembleia, os mandatos não podem ser tratados apenas como números. O que está em confronto não são (não podem ser) 107 mandatos vs. 122 mandatos. Subjacente a estes números está uma vontade, democraticamente expressa através do voto, de escolher uma maioria (PSD/CDS) e, por essa via, de a legitimar a formar governo. É uma espécie de lógica finalista que falha na construção mirabolante daquilo a que se tem chamado “maioria de esquerda”. Respeitar a vontade do povo não é juntar os perdedores e, com isso, criar uma nova maioria; é obrigar a maioria vencedora a ceder, a negociar, a transigir. A democracia não é uma conta de matemática.
c) Portugal é uma democracia representativa, mas não é um sistema de cariz puramente parlamentar. O Presidente, dotado de legitimidade democrática directa, tem poderes autónomos de intervenção política – e por isso tantos caracterizam o nosso sistema como semipresidencial. Como escreveu Vital Moreira, “o Presidente da República funciona como um “quarto poder” ou como poder moderador, com funções de fiscalização, supervisão e regulação do sistema de governo”. Surpreende-me que seja necessário recordar este princípio consensual àqueles que sempre o defenderam com mais afinco. A nomeação do primeiro-ministro e do Governo constitui uma competência própria do Presidente da República. Não cabe à Sra. Deputada Catarina Martins, à saída de reuniões secretas, decretar o fim de um governo ou a designação de outro primeiro-ministro, qualquer que ele seja, apresentando-o como um facto consumado. Não compete ao Sr. Deputado António Costa, rejeitado em eleições para primeiro-ministro, autoproclamar-se líder de uma suposta solução de governo, independentemente do juízo de apreciação política do Presidente sobre a consistência ou viabilidade dessa solução. Essas competências pertencem, repito, ao Presidente. O condicionamento, senão mesmo a desconsideração, do espaço de decisão do Presidente da República atingiu níveis impensáveis nestas duas últimas semanas. Como também escreveu Vital Moreira aquando da substituição de Durão Barroso por Santana Lopes em 2004, “só falta que o autodesignado "governo" se apresente por sua iniciativa perante a AR para apresentar o programa do governo.” Os teóricos da liberdade de decisão presidencial mostram-se afinal pouco convictos dessa liberdade quando o Presidente não provém da sua área política.
d) De igual modo, as funções do Presidente da República não passam apenas, no nosso sistema, por velar pela estabilidade política e pela regular formação dos governos. O regime não corresponde só a um instrumento de governo. O regime assenta em opções, valores, obrigações, consensos. A margem de actuação presidencial passa também por defender os fundamentos de um regime comprometido com a participação europeia, cumpridor das suas alianças externas e respeitador das suas obrigações internacionais. Não se pode esperar outra coisa do Presidente, qualquer que ele seja, senão ser o guardião destas fundações (também elas constitucionais) do regime. E, nota à parte, outra coisa não se poderia esperar deste Presidente para quem a nossa pertença europeia foi sempre um elemento definidor da sua acção política.
e) O espírito de condicionamento – dizendo aqui melhor: de autêntica obstrução - chegou ainda, desastrosamente, à posição sobre o papel da Assembleia da República no processo de formação de um governo. Quando se vai ao limite de considerar dispensável – e uma “perda de tempo” – a nomeação de um governo formado pela força política vencedora das eleições por causa do risco antecipado e redobrado que esse governo teria, ou terá, de ver rejeitado o seu programa, fica claro aquilo que se pensa e não se pensa sobre a soberania democrática do Parlamento, a legitimidade democrática dos governos minoritários, a publicidade dos debates parlamentares e o mandato individual dos deputados que, sendo responsáveis perante os seus partidos, são também responsáveis perante os eleitores e o país. É, com efeito, grave e inédito.
e) É inédito ainda por outra razão. Portugal não tem um sistema parlamentar puro, não só porque o Presidente da República detém poderes políticos ampliados, mas porque a nossa democracia integra a “família” das chamadas democracias parlamentares racionalizadas. Por parlamentarismo racionalizado entende-se, nas palavras de quem há muito criou o conceito, “um conjunto de mecanismos constitucionais destinados a assegurar a estabilidade do executivo”. Permitir a formação e viabilização de governos minoritários foi sempre um meio de racionalização e estabilidade da nossa democracia, considerando em particular que o nosso sistema eleitoral proporcional não facilita a criação de maiorias absolutas. Daí que os governos tivessem sido dispensados pela Constituição de obter uma aprovação formal do seu programa no Parlamento, bastando que esse mesmo programa não seja rejeitado. Por isso, a prática política, desde 1976, conheceu numerosos governos minoritários, o último dos quais em 2009 com José Sócrates. A mesma prática conduziu a que, de 1976 a 2009, e em todas as situações em que o PS ganhou as eleições sem maioria absoluta, PSD e CDS não se opusessem à viabilização de governos minoritários. Como escreveu Jorge Reis Novais, “um governo minoritário não é uma anormalidade constitucional nem suscita quaisquer problemas de legitimidade democrática, de título ou de exercício. É expressão da vontade do eleitorado manifestada no quadro do sistema eleitoral e nele se podem descobrir virtudes”. Estamos novamente de acordo.
f) Ora, ao abandonar-se agora a convenção de quem ganha as eleições, governa, a apreciação do programa de governo ameaça converter-se estrepitosamente no seu contrário: de um mecanismo que na democracia portuguesa sempre facilitou a viabilização de governos minoritários para uma forma de imposição de governos maioritários e, consequentemente, de oposição à formação de governos minoritários de centro-direita. Daqui para a frente, e se tal se consumar, o centro-direita só poderá governar Portugal se dispuser de uma maioria absoluta, condição que, como sabemos, o sistema eleitoral propicia com especial dificuldade. É bom sublinhar que não há qualquer novidade nos resultados das eleições de 2015. Foram muito semelhantes a 1985 em que o PSD obteve 29,87% e o CDS 9,96%, ou a 2009 em que o PS alcançou uma maioria relativa com 36,56% dos votos e PSD e CDS respectivamente com 29,11 e 10,43. A verdadeira novidade é esta: a alteração das condições de legitimidade em Portugal para formar governo. Os governos minoritários (do PS ou PSD) foram sempre uma opção tida como viável e legítima não podendo o Presidente obrigar o partido ou partidos vencedores a uma maioria que estes não pudessem construir. A mudança abrupta das regras de legitimidade significa que os governos minoritários do centro-direita passarão a ser uma opção impossível podendo um grupo de partidos derrotados unir-se para impor ao Presidente uma maioria, mesmo que este a considere inconsistente. Os equilíbrios do nosso sistema político serão assim rompidos.
g) Aliás, outro ponto quase em forma de parêntesis: é precisamente porque somos uma democracia parlamentar racionalizada que foi criada outra convenção constitucional, segundo a qual sempre coube ao partido ou coligação de partidos mais votada assumir o cargo de Presidente da Assembleia da República. Esta convenção não era nenhum “prémio” ao vencedor. Ela tinha por objectivo conferir maior estabilidade e racionalidade ao funcionamento do trabalho parlamentar, em particular na sua relação com o Governo, evitando que o Parlamento se transformasse numa câmara meramente negativa e instável, mas servindo também para moderar, através dum espírito de equidistância, a maioria que sustenta o Governo. A regra impôs-se, inclusive, diante de governos minoritários, como sucedeu em 2009 com a eleição de Jaime Gama. Ontem, pela primeira vez, foi quebrada. Viu-se no que deu: um discurso sectário de Ferro Rodrigues que entendeu agir como Presidente de metade da Assembleia contra a outra metade, exactamente o oposto da razão que justificou a criação dessa convenção parlamentar.
h) Mas: e lá fora? Por estes dias têm sido apresentados cinco exemplos de países europeus cujos governos assentam em coligações pós-eleitorais compostas por partidos que não venceram as eleições. Esses exemplos seriam, nomeadamente, Bélgica, Dinamarca, Luxemburgo, Letónia e Noruega. Pergunto se houve tempo para perceber como funcionam os sistemas políticos nestes países. Quatro dos cinco citados são monarquias constitucionais parlamentares, em que o Chefe de Estado assume um papel muito reduzido. Os respectivos sistemas eleitorais produzem uma elevada proliferação de partidos, vários deles com votação semelhante na casa dos 20%. Os sistemas partidários assentam em coligações entre partidos centristas, que oscilam entre centro-esquerda e centro-direita. Os partidos radicais, como aconteceu com os comunistas, passaram por percursos longos de convergência e modernização, tanto nos seus programas, prática política e organização interna. A formação de coligações nunca é vista como inesperada pelo eleitorado. Como acontece na Dinamarca ou na Suécia, os eleitores sabem à partida com o que contam. Em suma, o comparativismo apressado pode não ser o método mais feliz.
i) Por tudo isto, e sem que saibamos todos os desenvolvimentos deste processo, há desde já um facto a que possivelmente já não iremos conseguir escapar: a ruptura das regras de confiança política na nossa democracia. Uma ruptura que afectará as relações entre PSD, CDS e PS, mas também entre todos os restantes partidos. Uma ruptura nas regras de legitimidade na formação dos governos e nas fronteiras e equilíbrios que sempre nos habituámos a respeitar. Uma ruptura que impedirá a construção de consensos ao centro, ora mais para a esquerda, ora mais para a direita, o que atendendo às decisões parlamentares que carecem de maiorias de dois terços só irá agravar o bloqueio e a erosão do nosso sistema político. Ao ser mudada a regra de que quem ganha com maioria (relativa) afinal não governa, são os equilíbrios políticos entre a esquerda e a direita que sairão destroçados. Com isto regredimos anos e anos; e podemos regredir ainda mais. E não sei quantos mais levaremos depois para recuperar. A estabilidade de Portugal é o bem mais valioso. Boa sorte para todos nós.
Secretário de Estado Adjunto do Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional

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