O Presidente, a esquerda e um Governo de gestão
José Luís Ramos Pinheiro, RR online 26 Out, 2015
O Presidente fez bem em indigitar Passos Coelho. Mas, se o Parlamento derrubar o Governo da coligação, o Presidente faria mal em insistir num governo de gestão politicamente mutilado.
Ao longo da história, raros foram os momentos em que Cavaco Silva teve os favores dos analistas.
Como líder do PSD, primeiro-ministro ou Presidente da República, Cavaco Silva perdeu quase sempre no tabuleiro dos comentadores e venceu quase sempre no terreno dos eleitores.
Ganhar nas urnas não equivale a ter sempre razão. E Cavaco Silva, nas suas diversas funções, teve opções discutíveis e decisões erradas. Mas ninguém pode negar que no seu tempo e a seu modo procurou servir o país e as pessoas.
A marca do serviço é mais importante do que qualquer ideologia. Aliás, nenhuma ideologia pode reivindicar o monopólio do serviço ao bem comum. E o sucesso de uma ideologia ou de um partido não coincidem necessariamente com o sucesso do país; e este é que deve prevalecer.
Neste contexto, ainda me recordo dos tempos em que muito boa gente do PSD acusava o primeiro-ministro Cavaco Silva de governar sem ligar coisa nenhuma ao seu próprio partido.
Já como Presidente tentou, em 2013, patrocinar um acordo alargado entre os partidos da coligação e o PS. Do mesmo modo, e no auge dos desentendimentos dentro da coligação, chegou a recusar dar posse ao vice-primeiro-ministro Paulo Portas, enquanto não houvesse garantias de maior estabilidade.
A marca de Cavaco sempre foi esta: definir uma trajectória política, de acordo com a sua interpretação do interesse do país. Nem eu, nem muitos portugueses estivemos sempre de acordo com as opções, mas há que reconhecer a independência dos juízos.
Deste modo, não li no último discurso de Cavaco – ainda assim, excessivamente crispado – uma declaração de guerra a dois milhões e 700 mil portugueses, como defendeu Pacheco Pereira. De facto, muitos eleitores que votaram PS ou Bloco não desejavam nem antecipavam um governo à esquerda. E se antecipassem um cenário como este, não sabemos em rigor o que fariam, porque tal não lhes foi sugerido nem muito menos perguntado.
A democracia, como dizia Churchill, é o menos mau dos regimes. Mas é sempre ingrato ver os partidos pegarem nos mandatos obtidos e utilizarem-nos para fins diversos, que em tempo útil não desvendaram aos eleitores. E convém não esquecer: PS, Bloco e PCP mantiveram desacordos profundos, até ao próprio dia 4 de Outubro. Mesmo agora não conhecemos os compromissos com os quais se propõem governar estavelmente o país. E não é difícil encontrar quem tendo votado nalgum desses partidos, manifeste agora a sua oposição a um tal Governo, como tem assumido Francisco Assis, de modo claro e corajoso.
Esses eleitores compreenderão que o Presidente, com o seu estilo peculiar, está apenas a ser fiel ao que entende ser melhor para Portugal.
Em fim de mandato, Cavaco Silva terá desejado clarificar os termos da equação política. E exprimiu as vantagens de um acordo entre partidos que defendem a Europa, o tratado orçamental, o respeito pelo equilíbrio das contas públicas e o alinhamento de Portugal com os seus aliados da Nato. Simultaneamente defendeu que um Governo desta maioria de esquerda corre riscos elevados no plano social, económico e financeiro que podem deitar a perder não só a credibilidade externa, mas também o sucesso da recuperação do país.
É a posição do Presidente. E tem direito a ela.
Já o apelo à consciência dos deputados na hora da viabilização de um novo governo da Coligação é excessivo e desnecessário: neste momento, os estragos potenciais no grupo parlamentar do PS são conhecidos, não vale a pena sublinhá-los à exaustão.
Mas também não li nas palavras de Cavaco Silva o pré-anúncio de que não empossará um Governo de maioria de esquerda.
O Presidente terá querido apenas esclarecer de modo cabal por que motivo não concorda com uma tal opção. Mas estou convencido que, se vier a ser chumbado o Governo da coligação que dispõe de 107 deputados no Parlamento, o Presidente – com garantias quanto ao processo europeu – dará posse a um Governo de António Costa.
Não vejo que Cavaco Silva possa defender, no actual contexto, um Governo de gestão, até ao Verão de 2016. Nem pressinto que Passos Coelho e Paulo Portas queiram prestar-se a um tal martírio.
De facto, o Presidente sabe que um governo de gestão ver-se-á impedido de tomar medidas de fundo. Qualquer sobressalto na frente financeira encontraria em Portugal um Governo anémico, sem capacidade constitucional e política para enfrentar essa ou outra crise. As derrapagens económicas e financeiras implicariam ainda mais sofrimento social, porque ao dobrar da esquina estaria a ameaça de novo resgate, a exemplo do que acabou por suceder na Grécia. Não desejando um Governo de maioria de esquerda, como abundantemente explicou, Cavaco Silva sabe que um Governo de gestão produzirá necessariamente consequências trágicas para o país, às quais, naturalmente, não deseja ficar ligado.
Duvido também que os presidentes do PSD e do CDS pretendam manter-se no Governo com um mandato de mera gestão que os obrigaria a assistir à degradação do país, sem poderem remar contra a maré. E se por absurdo pretendessem manter-se em gestão, acabariam por ser penalizados do ponto vista eleitoral, por terem ajudado a inviabilizar um Governo (de maioria de esquerda) que na plenitude das suas competências estivesse obrigado a enfrentar os ossos deste difícil ofício.
O Presidente fez bem em indigitar Passos Coelho como primeiro-ministro, porque a coligação PSD/CDS venceu claramente as eleições e deveria poder governar, mesmo sem maioria absoluta, o que implicaria negociar, designadamente com o maior partido da oposição.
Mas, se o Parlamento derrubar o Governo da coligação, o Presidente faria mal em insistir num governo de gestão politicamente mutilado, entregando aos maiores responsáveis por esta crise política o sossego da oposição e o desassossego da rua.
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