Uma visita ao cinismo
Paulo Tunhas
Observador 22/10/2015
O principal trunfo do cinismo é deixar-nos espantados e desarmados. A vida em sociedade exige algo como um princípio de credulidade, uma confiança, mais ou menos espontânea, nos outros.
Os tempos andam malsãos. Parece que vivemos num daqueles poemas terríveis de Sá de Miranda, onde tudo é suspeita, logro, perigo, espanto, dissimulação, e nada é nítido. A atmosfera não é de banal má-fé. É uma atmosfera de cinismo, de cinismo puro e duro. São coisas muito diferentes. O homem de má-fé mente-se a si mesmo e acredita na verdade da sua mentira, o cínico não. O cínico mente com a perfeita consciência de que está a mentir e nem por um instante acredita no que diz. Se a má-fé pode proteger da argumentação racional e da persuasão comum, o cinismo é, no capítulo, mil vezes mais eficaz. Cria uma espécie de invulnerabilidade por relação a uma e outra.
O principal trunfo do cinismo é deixar-nos espantados e desarmados. Por razões que têm provavelmente a ver com as condições básicas da vida em sociedade, não estamos nunca suficientemente preparados para o cinismo. A vida em sociedade exige algo como um princípio de credulidade, uma confiança, mais ou menos espontânea, nos outros. Mesmo um céptico encartado tem de adoptar esse princípio na sua vida quotidiana. Ora, esse princípio de credulidade comporta, em graus variáveis, a possibilidade de reacção à má-fé e à mentira pura e simples. Com isso aprendemos bem a viver, por mais desagradável que seja. Não assim com o cinismo. O cinismo, mesmo para as pessoas teoricamente mais bem preparadas para a ele reagirem, menos fáceis, por hábito ou profissão, de se deixarem surpreender, deixa-nos inermes. Viola o princípio de credulidade nas suas bases mais fundas. É difícil não o sentir como um escândalo.
Sem paradoxo algum, o cínico pode proclamar grandes ideais. Não acredita neles por um só instante, é claro, mas isso obviamente em nada o perturba. O grau de comprometimento do cínico com as suas ideias é nulo. O que, diga-se de passagem, lhe é extremamente útil. A maior parte das pessoas vive as suas ideias com algum comprometimento: menos com umas, mais com outras. E essa relação de comprometimento varia, em relação a todas elas, com o tempo, permanecendo nos melhores o amor como um ideal de comprometimento absoluto. Mas há, em todo o caso, comprometimento efectivo. O cínico encontra-se liberto desse fardo, e, liberto desse fardo, encontra-se igualmente disponível – dentro da esfera das suas possibilidades, que é ditada pelas condições da sua sobrevivência – para acolher todas as ideias que lhe surjam úteis. Descomprometido essencialmente, pode simular comprometimentos essencialíssimos com o que lhe apetecer.
Samuel Beckett escreveu um dia que “é preciso acreditar que sim, mas saber que não”. É discutível que se possa verdadeiramente viver assim, já que a crença se desdobra quase naturalmente na presunção do saber e não se vê muito bem como a manter com a consciência do seu exacto oposto. De qualquer maneira, o cínico não subscreveria a bela frase de Beckett. Dada a sua natureza pragmática, descomprometida com as ideias e portanto exclusivamente pragmática, monomaniacamente pragmática, nem acreditar que sim nem saber que não lhe interessam. Por impossibilidade do seu ser, não se relaciona com crenças próprias. A sua fórmula seria antes: “É preciso que os outros acreditem que sim e não saibam que não”. E é impressionante como tem por vezes sucesso, mesmo quando não é preciso possuir um tacto particularmente fino para não acreditarmos que sim e sabermos que não e até para detectarmos um inquietante vazio na alma do cínico.
Quem é convencido pelo cínico? Certamente que as pessoas de má-fé, que sempre aspiram a ter um cínico por mestre. A má-fé aprecia o esplendor do cinismo, o quase heroísmo do seu desprezo pela verdade e a sua magnífica ausência de pudor. Vê nele uma liberdade que ela própria não possui. Mas convence igualmente os ingénuos, particularmente aqueles predispostos a acreditarem na omnipotência do pensamento de que falava Freud, que criou a expressão para descrever a crença primitiva, ou simplesmente neurótica, numa eficácia imediata do pensamento sobre o mundo. O descomprometimento com as ideias do cínico permite-lhe sugerir que, no fundo, tudo é possível. E que melhor sugestão do que essa para quem aspira a uma transformação mágica da realidade? Os puros pensamentos agem sobre as coisas e modificam-nas. O desejo e a vontade actuam sobre o mundo sem necessidade de quaisquer mediações. A realidade exterior é abolida e substituída por uma projecção que satisfaz a psique. Uma perfeição. Com o ligeiro inconveniente – que, obviamente, não preocupa o cínico – de, por definição, conduzir a maus resultados.
Até onde pode ir o cínico? Ou, dito de outra maneira: como se sai da hora do lobo, do tempo de indistinção e de falta de confiança em que o cínico nos mergulha? É uma boa pergunta. Talvez quando aqueles que o toleram em benefício próprio o traírem. Talvez quando, passada a surpresa inicial, aquele inquietante vazio que habita a alma do cínico se tornar excessivamente palpável e a sua fragilidade última se revelar. Talvez quando a má-fé daqueles de que o cínico se alimenta se comece a desvanecer, por uma razão ou outra, surto de boa-fé ou interesse de salvação pessoal. Talvez quando a bruta realidade destruir a ilusão da omnipotência do pensamento que o cínico habilmente instilou em muitos e de que precisa como pão para a boca para sobreviver. Mais tarde ou mais cedo estas coisas acontecem todas, e mais cedo do que tarde acontecerão. A questão que se coloca é: e em que estado estaremos nós quando finalmente chegar esse momento?
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