Tanta hipocrisia!
Maria de Fátima Bonifácio
ionline 31/10/2015
O famoso “acordo” ainda está em laboratório. Quanto mais o tempo passa, mais Costa é obrigado a ceder. O PCP há-de espremê-lo até à última das concessões. Tremendismo?! A ver vamos.
Confesso que deixei de acompanhar com pormenor o sórdido enredo da política nacional, criado por António Costa com o único e exclusivo propósito de chegar a primeiro-ministro e, deste modo, salvar a pele e manter-se à frente do PS. Uma vez desencadeado, Bloco e PC são os Judas em cujas mãos depositou o futuro próprio, e, o que lhe importa muito menos, o do partido. Costa odeia o Bloco, o Bloco odeia o PC, e o PC odeia e despreza ambos. O Bloco espera “pasokisar” o PS, o PCP espera destruí-lo. Mas lá vai Costa, cantando e rindo.
No meio da barulheira infernal que se instalou, a que me tenho poupado o mais possível, chegou-me todavia o coro de lamentações e indignações levantado contra o discurso do Presidente da República de 22 de Outubro. Discurso alegadamente vingativo e “divisionista” (um termo caro ao PC), um discurso que perpetrara a suprema heresia de excluir do sistema político a sua componente comunista e bloquista. Sobre esta falácia, Francisco Assis já disse tudo no seu artigo de há dias, no «Público»; e na imprensa, houve jornalistas profissionais que explicaram, pacientemente, a Constituição: esta prevê dois momentos em que o PR detém poderes discricionários: a dissolução do Parlamento, a indigitação do primeiro-ministro.
Mas há muito mais que justifica plenamente as palavras firmes e claras de Cavaco Silva, aliás hoje reiteradas na cerimónia da posse do segundo governo de Passos Coelho. Palavras claras, um género caído em desuso num país político que adoptou o eufemismo como língua franca de todas as facções, de que a verdade e a sinceridade foram banidas para dar lugar à ambiguidade como norma e como método: a cada momento, ela permite reinterpretar o que chegou a ser dito, mas já não interessa que continue a ser dito. Ou seja, a ambiguidade, a expressão equívoca, são os instrumentos privilegiados de uma política radicalmente oportunista, que só aos poucos, e mesmo assim ainda ambiguamente, confessa os seus fins. O Partido Socialista, enquanto grande partido democrático e definidor da fronteira da liberdade, está podre, enfermo de doença grave e com toda a probabilidade letal. É uma questão de tempo. A menos que arrepie caminho – se for a tempo.
Cavaco Silva, em 22 de Outubro como ainda hoje, falou claro e disse o suficiente. Os visados, ou, num plebeísmo, os que enfiaram a carapuça, com excepção de verdadeiros ingénuos, que os há, fingiram-se ofendidos, indignados, aviltados e sei lá que mais – tanta hipocrisia !
O Presidente limitou-se a tirar as consequências de uma lição que todos aprendemos na instrução primária: é impossível somar pêras com laranjas e tangerinas. Pêras, laranjas e tangerinas são entidades heterogéneas, irredutivelmente distintas entre si. As pêras são o PS, as laranjas são o PC, e as tangerinas são o Bloco, umas tangerinas que brotaram de um originário tronco comum – o marxismo-leninismo – mas que continham, e contêm, um aditivo trotskista que as diferencia do vetusto tronco incontaminado da ortodoxia. Estaline liquidou o trotskismo: o próprio Trotski, já refugiado no México, foi aqui mandado assassinar por Estaline a golpes de picareta na cabeça. Depois desta “guerra civil”, na realidade e em essência mais propriamente um conflito de natureza específica que atravessa e dilacera uma família e respectiva parentela, apartando-a em grupos irremissivelmente inimigos e antagónicos, ninguém se reconcilia. Daqui nasce o ódio entre o PC e o Bloco, que têm velhíssimas contas a ajustar e cuja competição não tardará a derrubar Costa, se este vier a ser empossado primeiro-ministro. (Santana Lopes, no CM de hoje, deixa uma dúvida a pairar.)
O PS – as pêras – não abdicou expressamente, até ao momento em que escrevo, da sua natureza democrática, atlantista e europeísta, nem proclamou que rejeitava as obrigações decorrentes da nossa pertença à Europa e ao Euro, vertidas em vários documentos com diversos estatutos jurídicos, mas todos eles solenes e vinculativos. Todos eles têm a assinatura do Partido Socialista Português e comprometem, obrigam Portugal.
O Bloco defende a preparação do exit português do euro, possivelmente da Europa, mas, de momento, coloca essas insuperáveis divergências entre parêntesis e fecha-os olhos como se não existissem e fosse possível abstrair delas. Porém, Jerónimo de Sousa, ontem à noite na SIC foi taxativo: essas “diferenças” existem e não desaparecem só porque fingimos que não vemos e não ouvimos – “estão lá”. O PS finge; o Bloco finge; mas o PC não finge e pelo contrário recorda-as e sublinha-as. As pêras, as laranjas e as tangerinas não se podem somar. Ou seja, os deputados podem-se somar – mas aquilo que representam não pode. Logo e por consequência, a soma aritmética de deputados não corresponde a nenhuma maioria política com um mínimo – um mínimo – de homogeneidade. Os deputados continuarão ser os deputados do PC, os deputados do Bloco, os deputados do PS, três partidos incompatíveis e que “não se somam”. Não há volta a dar-lhe.
Esta semana Jerónimo repetiu pela enésima vez o programa verdadeiro do PCP, para além das exigências imediatas e pontuais de aumento dos salários, reposição das pensões, revisão das leis laborais, reforço da Intersindical e da contratação colectiva. Nos dois últimos casos não chamou as coisas pelos nomes e nem era preciso: toda a gente sabe ao que se referia.
Mas, como relembrou Jerónimo, o programa do PC transcende imensamente estas reivindicações de conjuntura. Resume-se em três palavras: autarquia (auto-suficiência) para Portugal; até mesmo numa: isolacionisnmo. Salazar diria: “orgulhosamente sós”. O PC diz: sós, orgulhosos e pobres, soberanos ! Como ? Saindo da Europa e do Euro, voltando ao escudo, nacionalizando, quer dizer, expropriando os bancos, os seguros, as empresas ditas estratégicas e as telecomunicações. Depois de tudo descapitalizado e de bancarrota ou inflacção venezuelana – soberanos, o escudo pode ser desvalorizado à vontade – Portugal recairia na ancestral miséria, igual ou maior ainda, de que já começara a erguer-se nos últimos anos do salazarismo e no marcelismo.
As telecomunicações, claro: um programa destes exige censura, a liquidação da imprensa e das televisões privadas e livres, e uma polícia política. Nunca em lado nenhum o “socialismo real” (e não há outro) dispensou estes instrumentos.
O Presidente da República sabe isto e muito mais. Sabe o que qualquer português letrado e maior de idade sabe ou deveria saber. Infelizmente, a clamorosa ignorância histórica e política de alguns dos nossos mais jovens opinadores, mesmo de colunistas estupendos, leva-os a pensar que a história do Mundo começou depois da queda do muro de Berlim, e que a história de Portugal começou depois do fim do PREC, lá para finais dos anos setenta do século XX. Acontece que, do ponto de vista que agora nos interessa, a história começou, para Portugal e para o Mundo, em 1917, ano da revolução bolchevique na Rússia.
O famoso “acordo” ainda está em laboratório. Quanto mais o tempo passa, mais Costa é obrigado a ceder. O PCP há-de espremê-lo até à última das concessões, para que o desesperado aspirante a primeiro-ministro mais rapidamente dê cabo de Portugal.
Tremendismo?! A ver vamos.
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