Democracia: o regime da regra

JOÃO CARLOS ESPADA Público, 07/04/2014 - 00:22
Talvez pudéssemos aprender com o exemplo destes senadores desinteressados.
Por que elegemos o Presidente da República por sufrágio directo e universal? Esta foi a pergunta improvável que reuniu na passada quarta-feira destacados protagonistas da transição democrática portuguesa: Miguel Galvão Teles, António Barbosa de Melo, Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda, Jaime Gama e Luís Salgado de Matos. Na assistência, estavam, entre outros, Adriano Moreira, Maria Barroso, Vasco Rocha Vieira e Nuno Vieira Matias.
Aos olhos de muitos comentadores actuais, esta pergunta pode parecer deslocada numa celebração dos quarenta anos do 25 de Abril. Não é, digamos assim, uma pergunta mediática. Curiosamente, todos os oradores entenderam a pergunta como muito crucial. E deram uma resposta unânime: a eleição por sufrágio directo e universal do Presidente da república foi uma decisão-chave para a viabilização do regime democrático – um regime democrático de tipo ocidental, como acentuou enfaticamente Jorge Miranda.
Ficámos a saber que a decisão não foi unânime entre os militares do Conselho da Revolução. Que foi sobretudo defendida pelos partidos políticos, em particular PSD e PS. Que terá sido Barbosa de Melo o grande defensor do desfasamento temporal entre as eleições parlamentares e as eleições presidenciais – e que essa foi uma decisão crucial para permitir autonomizar a legitimidade do Presidente do controlo directo dos partidos políticos.
Ficámos ainda a saber que, para os militares que queriam um regime de tipo ocidental, a decisão foi fundamental para um gradual regresso dos militares aos quartéis. Como sublinharam Rocha Vieira e Vieira Matias, só um Presidente eleito por sufrágio directo e universal poderia restabelecer, como comandante-chefe das Forças Armadas, a disciplina interna nas FFAA e a sua ordeira submissão ao poder civil eleito democraticamente.
O General Ramalho Eanes foi o primeiro Presidente eleito por sufrágio directo e universal. E, sobretudo no primeiro mandato, desempenhou exemplarmente a missão constitucional de "civilizar" o regime. Mário Soares foi o primeiro civil a ser eleito Presidente da República. Os seus mandatos, sobretudo o primeiro, foram exemplo de reconciliação nacional e de coabitação com governos de sinal político contrário – os governos de Cavaco Silva. Esta ideia do Presidente como árbitro imparcial, acima das suas próprias preferências políticas, foi genericamente mantida por Jorge Sampaio e tem sido enfaticamente retomada por Cavaco Silva – em condições particularmente difíceis.
A democracia é o regime da regra, como gostava de dizer o Presidente Mário Soares. E o debate de quarta-feira passada, promovido conjuntamente pelo IEP-UCP e pelo IPRI-UNL, foi muito esclarecedor nesta matéria. Mostrou como uma decisão procedural sobre regras – a eleição do PR por sufrágio directo e universal – foi decisiva para a transição democrática.
Foi também um debate tocante. Ali estavam algumas das pessoas a quem realmente devemos o privilégio de vivermos numa democracia de tipo ocidental – na verdade, o único tipo de democracia realmente existente. Ali estavam desinteressadamente, sem qualquer recompensa provável, tal como desinteressadamente, mas nessa época com riscos reais, se tinham batido pela democracia há quarenta anos.
Talvez pudéssemos aprender com o exemplo destes senadores desinteressados. Talvez os nossos debates políticos pudessem perder algum radicalismo e ganhar alguma tranquilidade. Talvez pudéssemos reaprender que a democracia é sobretudo o regime da regra, do respeito escrupuloso pelas regras do jogo, e não prioritariamente sobre a preferência política de cada um. É o respeito escrupuloso pelas regras do jogo que garante a liberdade de cada um ter, e de exprimir, e de submeter a sufrágio, a sua própria preferência.
Este terá sido também um dos motivos inspiradores da iniciativa conjunta entre IEP-UCP e IPRI-UNL. Tratou-se de uma primeira iniciativa conjunta para celebrar a liberdade e a democracia. A 6 de Novembro, uma outra conferência assinalará os 25 anos da queda do Muro de Berlim. Em ambos os casos, celebra-se a democracia como regime da regra, o governo das leis acima do capricho da vontade arbitrária.

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