Virtudes e defeitos de Abril
Virtudes e defeitos de Abril (1)
Se há coisa em que os norte-americanos são realmente bons é a criar heróis e memoriais. Toda a sua mitologia está assente na figura do homem normal que em momentos extraordinários se consegue superar a si próprio, seja ele Abraham Lincoln, Rocky Balboa ou Chesley Sullenberger, o comandante do avião que em Janeiro de 2009 conseguiu amarar nas águas geladas do rio Hudson, salvando todas as pessoas a bordo.
Por muito filme de Hollywood que a gente veja, nós não temos essa cultura em Portugal, nem, segundo parece, esse tipo de herói. Já desde os tempos da padeira de Aljubarrota que o herói português é invariavelmente do tipo relutante, mais dado à astúcia do que à coragem desabrida. É como nas velhas anedotas do português, do inglês e do francês – o português sai-se sempre melhor, mas nunca por fazer uso de qualquer espécie de heroísmo espampanante; sai-se melhor porque é o chico-esperto, o manhoso, o campeão dos improvisadores.
Recentemente, o PÚBLICO divulgou um longo excerto do texto que Adelino Gomes escreveu para o óptimo livro Os Rapazes dos Tanques, centrado na figura do cabo apontador José Alves Costa, que na manhã de 25 de Abril de 1974 se recusou a disparar sobre a coluna de Salgueiro Maia, mesmo após o brigadeiro Junqueira dos Reis lhe ordenar directamente "dá fogo já a direito". O que é extraordinário na descrição de Adelino Gomes não é a recusa em si – já antes o alferes Fernando Sottomayor havia feito o mesmo, recebendo ordem de detenção –, mas sim a forma tão portuguesa como Alves Costa resolveu o imbróglio que tinha à sua frente.
Em primeiro lugar, explicou ao brigadeiro que não percebia lá muito de tanques. "Fui improvisado para aqui. Sei pouco trabalhar com isto. Vou ver se consigo, mas eu não sei", desculpou-se. E quando o brigadeiro o ameaçou "ou dá fogo ou meto-lhe um tiro na cabeça!", Alves Costa decidiu-se por um desenrascanço 100% nacional: enfiou-se dentro da torre e trancou a porta. "Eu, fechando-me dentro do carro, ninguém abre, porque aquilo é blindado, entende?" E assim se fez Abril.
Nós somos o povo para quem Herman Melville criou, sem saber, o seu Bartleby, o desconcertante escrivão que fazia da passividade uma filosofia existencial. A tudo o que lhe era pedido Bartleby respondia: "Preferiria não o fazer." Também José Alves Costa preferiria não atirar sobre os revoltosos de Santarém. E não atirou. No entanto, nunca afrontou de forma directa o seu superior: "A gente sabia o regime que tinha. Se calhava as coisas não correrem bem, a minha vida podia ir para o maneta", explicou a Adelino Gomes.
É certo que o espírito luso-bartlebyano, na mão de burocratas, é de modo a conduzir qualquer alma ao desespero – como pode comprovar quem já passou dias numa repartição pública. No ramerrão diário, "preferiria não o fazer" é um inferno paralítico, que nos faz sonhar com as virtudes da disciplina teutónica. Mas na Alemanha dificilmente haveria um 25 de Abril com cravos enfiados nos canos das espingardas, porque um qualquer Alves Costa da Baviera nunca mandaria o seu brigadeiro dar uma curva enquanto fingia cumprir ordens. Para citar José Gil, a não-inscrição chega ao próprio heroísmo – o cabo apontador que impediu que a revolução se tornasse num banho de sangue viveu 40 anos no anonimato de uma aldeia da Póvoa de Varzim. Afinal, ele não fez nada. O que é tão absurdo quanto comoventemente português.
Virtudes e defeitos de Abril (2)
Sim, Abril cumpriu-se. Agora, só falta dar um passo em frente.
A dificuldade que o país tem em heroicizar os seus heróis e trabalhar a memória dos grandes acontecimentos, como se fôssemos um buraco de meio milénio que inexiste desde o tempo dos Descobrimentos, tem como consequência a desvalorização de feitos tão prodigiosos quanto aquele que São José Almeida recuperou num excelente trabalho na revista do PÚBLICO: a integração dos retornados após o processo de descolonização, em números que ninguém parece conseguir realmente calcular (andarão entre o meio milhão e um milhão de pessoas), um movimento populacional sem paralelo na Europa do pós-guerra, tendo em conta a dimensão de Portugal.
São José Almeida chamou-lhe "Uma história de sucesso por contar", e receio bem que não seja a única: quando se escutam os discursos sobre os 40 anos do 25 de Abril e aquilo que Portugal é hoje, em 2014, parece que estamos a falar de um Estado falhado e condenado à mais vil miséria. Vivemos tão obcecados com aquilo que nos falta que nos tornamos incapazes de contemplar aquilo que conseguimos. E se nos falta muito, a verdade é que conseguimos muito mais, seja a impressionante integração dos retornados, seja o cumprir do famoso projecto político-musical de Sérgio Godinho: "A paz, o pão, habitação, saúde, educação/ Só há liberdade a sério quando houver/ Liberdade de mudar e decidir."
Ora, apesar da febre apocalíptica que, tal como a febre dos fenos, parece tomar conta de tanta gente respeitável cada vez que Abril se aproxima, os desejos da canção de Sérgio Godinho cumpriram-se, um por um: 40 anos depois da revolução dos Cravos existe paz, existe pão, existe habitação, existe saúde, existe educação e, sobretudo, existe "liberdade de mudar e decidir". Nós podemos discutir se o pão, a habitação, a saúde e a educação chegam, se são os melhores, se estão bem distribuídos, se são sustentáveis, e sobre tudo isso todos teremos imensas queixas. Podíamos, e deveríamos, ser um país mais justo e menos desigual. Mas os extremos daqueles versos – a paz, a liberdade, a rotatividade –, nos quais qualquer regime democrático necessariamente assenta, estão assegurados, e bem assegurados.
Ou não estão? Eu diria que sim, mas a quantidade de pessoas que, afinal, acha que não, desde que Passos Coelho, Portas e a troika tomaram conta do país, não pára de me impressionar. E é curioso ver que quem mais defende "o verdadeiro espírito de Abril" mais parece desrespeitá-lo. Eu percebo o argumento: há quem ache que o actual governo está a "destruir as conquistas de Abril" e a "desmantelar o Estado social". Na verdade, o governo não está a desmantelar coisíssima nenhuma, e esse é até o seu pior defeito. Mas não entremos agora nessa discussão. O que importa é isto: mesmo que estivesse a desmantelar qualquer coisinha, tinha legitimidade democrática para isso.
O actual governo foi eleito com 47% dos votos em 2011 e nas mais recentes sondagens anda em redor dos 35%, o que significa que mantém três quartos do seu eleitorado após o maior programa de austeridade pós-1974. Ora, a tal "liberdade de mudar e decidir" significa precisamente ter de gramar com quem não gostamos. Porque essa é a liberdade fundamental, e é prévia a qualquer programa político. Sim, Abril cumpriu-se. Agora, só falta dar um passo em frente e ajudar alguns dos nossos democratas a sair da sua fase infantil, para que possam enfim reconhecer total legitimidade democrática àqueles com quem não concordam.
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