Liberdade é liberdade, ponto final

JOÃO CARLOS ESPADA 28/04/2014 - Público

Afinal, a famosa ditadura que se estava a instalar em Portugal e a destruir o "25 de Abril" -- a ponto de tornar legítimos apelos a uma nova revolução -- acabou por permitir uma larga variedade de celebrações pacíficas dos quarenta anos do 25 de Abril. Boa parte dessas celebrações foi aliás crítica do governo em funções, o que evidentemente não poderia ter acontecido se vivêssemos em ditadura.
Caiu assim por terra a sectária tentativa de apagar as diferenças entre o regime constitucional que temos hoje e a ditadura que tivemos até ao 25 de Abril. Essa tentativa já tinha tido lugar logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, com a reclamação dos "donos do 25 de Abril" que não queriam submeter-se a eleições livres e ao jogo leal entre partidos rivais. Foi o 25 de Novembro de 1975 que restabeleceu o respeito pelas regras imparciais da liberdade que o 25 de Abril permitira criar.
Nestas celebrações dos quarenta anos do 25 de Abril foi particularmente tocante o trabalho de várias televisões e jornais -- a começar por este mesmo jornal -- na evocação da festa da liberdade. E foi notável a intervenção de inúmeros cronistas e editorialistas a repôr "os pontos nos is". De diferentes quadrantes e com diferentes preferencias políticas e culturais, vozes independentes vieram recordar o que não deve ser esquecido: a liberdade não é de esquerda nem de direita, e por isso é ela que permite a livre expressão e concorrência entre propostas mais à esquerda e propostas mais à direita.
Houve apenas uma ausência nestas comemorações que valeria a pena recordar: a coincidência, em 2014, dos quarenta anos do 25 de Abril com os vinte e cinco anos da queda do Muro de Berlim. Em ambos os casos, regimes ditatoriais de sinal contrário deram lugar a regimes de liberdade sem adjectivos -- nem de esquerda, nem de direita, simplesmente liberdade.
Esta dupla celebração levou-me a revisitar um livrinho notável de Ralf Dahrendorf sobre a revolução de 1989: "Reflexões sobre a Revolução na Europa" (Gradiva, 1993). Está lá a distinção crucial entre política constitucional e "política normal", que foi tão confundida entre nós por alguns candidatos a "donos do 25 de Abril".
As políticas particulares, de esquerda ou de direita, fazem parte da "política normal", que é feita da concorrência pacífica entre políticas particulares rivais. Esta concorrência só é possível porque existe um quadro legal e constitucional que não é de esquerda nem de direita: é o conjunto de regras gerais e imparciais que permite e garante a concorrência entre políticas específicas rivais. Quando uma das partes, a esquerda ou a direita, começa a reclamar para si o monopólio das regras constitucionais -- quando quer identificar o regime constitucional da liberdade com uma proposta política particular, de esquerda ou de direita -- acaba a distinção entre "política constitucional" e "política normal". Aí começa realmente o princípio da ditadura, em que o regime constitucional só permite uma, e não várias, "políticas normais" rivais.
Dahrendorf fundou nesta distinção uma proposta de duas fases para a transição à democracia: uma primeira fase, constitucional, deve ser dedicada à elaboração de uma Constituição da liberdade. Numa segunda fase, de entrada na política normal, inicia-se a concorrência e alternância entre propostas e partidos políticos rivais. A primeira fase pode demorar seis meses. A segunda precisará de pelo menos seis anos (mais do que um mandato eleitoral) para se instalar.
Mas, segundo Dahrendorf, a prova da consolidação da democracia precisa de pelo menos sessenta anos. E ela vai depender da robustez e independência da sociedade civil, de milhares de associações autónomas e descentralizadas que fazem sua e dos seus modos de vida a defesa da Constituição da liberdade.
O 25 de Abril ainda não fez sessenta anos. Mas, tranquilamente, ordeiramente, quase docemente, Portugal celebrou quarenta anos de liberdade. Ao fazê-lo, e porque pôde fazê-lo, o país exprimiu a ideia fundamental de que a liberdade não tem dono. Por definição, é tanto minha como do meu rival. É de todos os que aceitam as regras gerais constitucionais que lhes permitem exprimir ideias variadas e usufruir de modos de vida diferentes, muitas vezes rivais. Isaiah Berlin imortalizou esta ideia imparcial da liberdade: "Liberdade é liberdade, não é igualdade, nem equidade, nem justiça, nem felicidade humana, nem uma consciência tranquila." 

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