“Um ser humano”
RUI TABARRA E CASTRO, ADVOGADO NA F. CASTELO BRANCO & ASSOCIADOS OJE | 2014/04/29 20H29
No passado dia 3 de abril de 2014, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu, por unanimidade, um acórdão que assume particular relevo no âmbito da discussão acerca dos direitos dos nascituros.
A questão suscitada perante o coletivo de juízes prendia-se com a suscetibilidade de dois irmãos terem tratamento jurídico diferenciado na atribuição de uma compensação por danos não patrimoniais próprios decorrentes da morte do seu pai, pela circunstância de um deles, à data do óbito do pai, não ter ainda nascido.
Entendeu o STJ que a diferença de tratamento "viola o direito constitucional da igualdade" e "repugna ao mais elementar sentido de justiça".
O Tribunal vai mais longe, afirmando que "o reconhecimento da personalidade de seres humanos está fora do alcance e da competência da lei", qualquer que seja a sua natureza, não sendo o nascituro "uma simples massa orgânica, uma parte do organismo da mãe (…), mas um ser humano, com dignidade de pessoa humana, independentemente de as ordens jurídicas de cada Estado lhe reconhecerem ou não personificação jurídica".
Afasta-se, pois, o douto tribunal da conceção que toma o nascituro como matéria orgânica equivalente a quaisquer vísceras da mãe, entendimento que autoriza argumentos do tipo "o corpo é meu" ou "aqui mando eu" para justificar o aborto livre, eufemisticamente designado por interrupção voluntária da gravidez, como se houvesse interrupção que não pudesse ser retomada. Na verdade, interrompida a vida do nascituro, nada mais há do que a sua morte, definitiva.
Ainda que haja quem sustente esta visão puramente materialista, digamos assim, não deixa de ser estranho que o legislador, respaldado no frágil resultado do referendo realizado em 11 de fevereiro de 2007 (não vinculativo), entenda razoável ter aprovado uma lei que consagra o aborto livre e que ainda hoje tolere a coisificação de seres humanos, de entes com "dignidade de pessoas humanas".
A maioria dos leitores talvez não se recorde, mas a pergunta colocada aos portugueses no dito referendo foi a seguinte "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"
Concordando-se ou não com a consagração do aborto legal (o autor destas linhas não concorda), não é difícil perceber que o legislador foi muito além do mandato que o resultado do referendo lhe conferiu, quando optou por, ao invés de se limitar a despenalizar a prática do aborto, escancarar as portas à possibilidade de se fazer um aborto, até às dez semanas, sem qualquer justificação e, mais grave, com o patrocínio do Estado. O aborto é não apenas livre como é gratuito, está isento de qualquer taxa moderadora e confere o direito a uma licença de 30 dias.
Não pretendendo trazer para este espaço a discussão ética que o tema encerra, importa assinalar a flagrante discrepância que existe hoje entre aquilo que é uma verdade absoluta para a biologia: um nascituro é uma vida humana – reconhecida pelos tribunais como merecedora de tutela jurídica (ainda que sem personalidade jurídica) – que se encontra num momento particular da sua vida, desenvolvendo-se de forma progressiva e ininterrupta e não alterando o nascimento a sua natureza como ser humano e a visão que o legislador decidiu plasmar na lei e que, na medida em que autoriza a supressão da vida do nascituro até às dez semanas sem qualquer tipo de limite ou motivação, retira toda e qualquer proteção legal a uma vida humana.
Mais de sete anos volvidos, nos quais terão sido feitos cerca de cem mil abortos (legais), vamos mais do que a tempo para, no plano jurídico, retificar o erro legislativo e, no plano ético, apesar da pressão do politicamente correto em sentido inverso, reabrir uma discussão acerca de um tema que não pode deixar ninguém indiferente.
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