Paixão
P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA
Voz da Verdade, 2014.04.20
Quer no domingo de Ramos, quer ainda na sexta-feira santa, a liturgia da Igreja recorda a paixão e morte de Jesus Cristo, segundo a narração que das mesmas é feita no Novo Testamento. Apesar de não ser um relato inédito para nenhum cristão, impressiona sempre essa tão viva recordação de um facto histórico acontecido há cerca de dois mil anos, mas sempre presente.
Quando, mais recentemente, um realizador de cinema se atreveu a reproduzir no ecrã as pungentes cenas da paixão de Cristo, um coro de vozes, também cristãs, se insurgiu contra a brutalidade da realização cinematográfica. De facto, o realismo dessa recriação histórica não podia deixar indiferente nenhum espectador, por mais alheio que fosse a essa temática. A crueldade do suplício infligido ao crucificado a todos incomoda e interpela e, por isso, houve até conspícuos católicos que acharam de muito mau gosto o filme de Mel Gibson.
A reacção dos que modernamente se sentiram indispostos com essa arrojada produção cinematográfica mais não fez do que reproduzir a indignada reacção de Pedro, ao primeiro anúncio da paixão do Mestre: «'Deus tal não permita, Senhor; não te sucederá isto'» (Mt 16, 22). Nessa ocasião, Jesus não lhe reprovou a falta de sabedoria humana, mas a sua insuficiente compreensão das coisas de Deus (Mt 16, 23).
Não interessa, a esta reflexão, o eventual mérito ou demérito dessa produção que, como qualquer representação artística, embora historicamente correcta na sua essência, permite-se algumas liberdades que, como é óbvio, são discutíveis. Mas ninguém pode negar que o filme, porque fiel aos relatos evangélicos que lhe servem de suporte, não exagera a realidade do que foi, de facto, a paixão e morte de Cristo.
A reacção dos que modernamente se sentiram indispostos com essa arrojada produção cinematográfica mais não fez do que reproduzir a indignada reacção de Pedro, ao primeiro anúncio da paixão do Mestre: «'Deus tal não permita, Senhor; não te sucederá isto'» (Mt 16, 22). Nessa ocasião, Jesus não lhe reprovou a falta de sabedoria humana, mas a sua insuficiente compreensão das coisas de Deus (Mt 16, 23).
Não obstante tão impressionante sofrimento, não é esse o centro para onde converge a liturgia da Igreja no tríduo pascal. Não é à dor que se presta homenagem na prostração inicial dos celebrantes, no eloquente intróito da celebração da paixão do Senhor, na sexta-feira santa. Não é a cruz que se adora quando, genuflectindo, se beija o madeiro.
Com efeito, a dor, pela dor, nada vale. O maior sofrimento pode não ter qualquer sentido ou valor. Até o sacrifício da própria vida pode ser, em termos religiosos, irrelevante. Porque, «ainda que eu distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, nada me aproveitaria» (1Cor 13, 3).
Nada vale se não for por amor e ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos (Jo 15, 13). Os fiéis são convidados a prostrarem-se diante da santa Cruz, não para adorarem o sofrimento de Jesus, mas o seu amor que, sendo universal, é também individual. Paulo tinha consciência de ser pessoalmente destinatário desse amor infinito do Deus humanado, «que me amou e se entregou por mim» (Gal 2, 20).
«Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao extremo» (Jo 13, 1). É o amor de Cristo que a Igreja celebra na sua paixão, a maior prova desse amor por todos e por cada um, sem excepção. Um amor que é, verdadeiramente, paixão.
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