Graça Moura e alguns desconfortos comuns

Daniel Oliveira
Expresso on-line, 29 de abril de 2014

Vasco Graça Moura era mais do que inteligente e culto. Ao contrário do que se costuma pensar, há muitas pessoas inteligentes, muitas pessoas cultas e algumas pessoas inteligentes e cultas. Para além de poeta, dramaturgo e ensaísta, será recordado como um extraordinário tradutor, o que está muito longe de ser uma qualidade menor. Só alguém muito seguro das suas capacidades pode ousar traduzir Petrarca, Shakespeare e Molière. Essa confiança tem de estar nos píncaros para traduzir a Divina Comédia. E só alguém que não se enganou na avaliação que faz de si mesmo se pode sair bem. Resumindo: Graça Moura estava entre os mais multifacetados e eruditos intelectuais portugueses.
Num momento de elogio, a escritora Maria Teresa Horta, amiga de Graça Moura e mulher de esquerda, declarou que era "inexplicável que um homem como o Vasco fosse de direita". Para a escritora, o posicionamento ideológico de Graça Moura "era contranatura". Apesar da simpatia que tenho por Maria Teresa Horta e de ter a certeza que a frase não pretendia, vinda de si, ser mais do que um elogio, ela leva-me a uma curta reflexão sobre esta relação entre as opções políticas e a qualidade de um autor. Se é possível pôr as coisas assim, Graça Moura era, ao contrário do que diz Maria Teresa Horta, intrinsecamente de direita. Mesmo como intelectual. E no que defendia como políticas públicas para a cultura ainda mais. Mesmo os argumentos que usou contra o Acordo Ortográfico, que foram incluídos nos elogios da escritora, foram essencialmente conservadores. E, no entanto, era possível ter usado argumentos de outra natureza. Acontece que Graça Moura era um conservador. E ser de direita e conservador, apesar de não ser irrelevante para o seu perfil intelectual e cultural, em nada beliscava as suas qualidades literárias.
Penso perceber o que estava na cabeça de Maria Teresa Horta. No momento do elogio fúnebre (ainda por cima a um amigo), misturam-se, mesmo que involuntariamente, duas coisas: um preconceito específico da esquerda e o preconceito político mais geral. Para Maria Teresa Horta, um intelectual tão admirável não podia estar no lado oposto da barricada.
O preconceito da esquerda é este: a direita é ignorante, inculta e odeia a liberdade das artes. O que torna o posicionamento político de Graça Moura, homem culto e "das letras", "contranatura". É claro que é um disparate. A direita não é nem mais nem menos culta do que a esquerda. Acontece apenas que a esquerda foi culturalmente hegemónica na segunda metade do século XX. E ainda mais em Portugal. Contou, por isso, com o apoio da grande maioria dos intelectuais. Mas, como é evidente nas gerações mais novas, não vive numa qualquer superioridade intelectual ou cultural. Tem um olhar diferente sobre o papel dos intelectuais na vida pública? Provavelmente. Tem um olhar diferente sobre a democratização do acesso à cultura? Seguramente. E nisso Graça Moura era indiscutivelmente de direita. 
O preconceito mais geral é outro e está longe de ser um exclusivo da esquerda: o de que há uma relação entre a qualidade e a relevância de um autor e o seu posicionamento político. Como se fosse estranho sermos profundamente marcados por um autor que está nos nossos antípodas ideológicos. Para não melindrar ninguém, escolho escritores estrangeiros. Latino-americanos, para simplificar o contraste político. Ponham de um lado Luís Sepúlveda, romancista (poeta, argumentista e até realizador) chileno empenhado em quase todas as causas da esquerda, amigo de Allende, herói na defesa do Palácio de La Moneda, preso e exilado político durante a ditadura de Pinochet. Do outro ponham Mario Vargas Llosa, romancista peruano, ativista liberal contra a presença do Estado na economia, nos anos 80, e candidato da direita à Presidência do Peru, em 1990. Não hesito um segundo na escolha: mil vezes a comovente genialidade de Vargas Llosa, provavelmente um dos maiores romancistas latino-americanos de sempre. Também não me ponham a escolher entre Jorge Luís Borges e Pablo Neruda. Para carregar mais as tintas: entre Céline e Máximo Gorki... Fiquemos por aqui, que isto não é um texto de crítica literária. É apenas para dizer que, para mim, cidadão politizado e culturalmente de esquerda, a posição ideológica de um autor, mesmo que esteja presente na sua obra, é pouco relevante para o respeito literário que lhe tenho. Quanto muito, pode ser importante para o respeito político que lhe devo. Nada mais.
No domingo, morreu um grande intelectual português. Como apenas conversei algumas vezes com ele, e, ao contrário de Maria Teresa Horta, pouco conheci da sua personalidade, foi apenas essa parte que lhe apreciei. Mesmo sendo de direita, poderia ter apreciado as suas reflexões políticas. Com dever para com a sinceridade, sem a qual os elogios são uma mera formalidade, achava-o politicamente desinteressante, pouco profundo e nada sofisticado. Incomparável ao autor e ao tradutor. Mas até poderia ter-se dado o caso do seu lado político ter sido mais denso. Teríamos todos, esquerda incluída, ficado a ganhar com isso. O que me parece fazer muito pouco sentido é tratar como uma excentricidade as suas convicções políticas. Como se a admiração intelectual e literária que Vasco Graça Moura realmente merecia fosse incompatível com a divergência política. Não é. Mas, na realidade, ainda há quem, à direita, tenha a mesmíssima dificuldade com José Saramago.

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