O bom papa João

O livro "O bom papa João", de Giuseppe Alberigo, apresenta-se como uma biografia de João XXIII (1881-1963) «redigida por um dos maiores estudiosos da sua figura e a partir do espólio epistolar disponibilizado, no início dos anos 90, aquando da instauração do processo da sua canonização».
A leitura das fontes do papa que convocou o Concílio Vaticano II (1962-1965) vai ser declarado santo no próximo domingo, 27 de abril, juntamente com o papa João Paulo II, permite destacar três polos constantes: «o seu compromisso perseverante para a santidade, em fidelidade à graça; a sua atenção aos acontecimentos históricos, tanto aos pequenos como aos grandes; e a Igreja, enfoque de fundo e permanente de toda a sua existência».
Da obra recentemente lançada pela Paulinas Editora apresentamos um excerto do último capítulo, «Um cristão Santo e Papa».
A fisionomia humana
Giuseppe Alberigo
É verdade que o cristão Roncalli, levado pela obediência até à cátedra de São Pedro, permaneceu fiel ao método e ao estilo que tinha lentamente elaborado em mais de setenta anos de vida, de oração e de serviço eclesial. Mas o que foi explosivo no seu pontificado foi precisamente o facto de um Papa se subtrair as modelos estereotipados e oficiais, deixando saltar as centelhas do contacto vivificante entre uma longa e intensa experiência cristã, que cresceu no sulco da tradição e foi alimentada com um incessante empenhamento pessoal, e com as expectativas latentes para um serviço profético, evangelicamente inspirado.
A cultura de Roncalli alimentou-se das fontes e, precisamente por isso, tornou-o capaz de perceber as linhas do longo período da história, de «dar um grande salto para o futuro». O empenhamento pastoral alimentado na Sagrada Escritura nutre-se de uma visão profundamente cristocêntrica da história (Cristo «luz das gentes»), suscita uma visão da Igreja não como um museu, mas como um jardim precioso que deve ser cultivado, e parte sobretudo de um homem que pôs na base da sua vida a obediência radical a Deus («Deus é tudo, eu sou nada») que é origem de fecundidade histórica, também experimentada, num estilo feito de pobreza e de fraternidade.
Na produção magisterial de João XXIII o que é característico não é tanto a «a maneira de tratar», mas o emergir de uma sensibilidade espiritual, de uma cultura «eclesiástica» e, ao mesmo tempo, profundamente humana. E o lugar em que este magistério melhor se exprime (isto é, no sentido de se manifestar com maiores traços característicos e próprios) é a pregação quase quotidiana (porque o papa João frequentemente transformava as audiências em prédicas).
O que é característico do magistério roncalliano [Angelo Roncalli, João XXIII]é a sua interna e bem manifesta ligação dos gestos e das atitudes práticas, em que se manifesta o homem de Deus e o «pastor de almas»: em primeiro lugar, sobretudo as visitas aos encarcerados, aos doentes e às paróquias. Em tudo isto está ausente a mediação de perito doutrinal, mesmo nos documentos de maior empenhamento, como a alocução de abertura do Concílio. Até um simples tema homilético pode ser retomado tanto no encontro diário com os fiéis como na mais caracterizada audiência ao clero ou até no mais solene ato da tomada de posse da cátedra do Bispo de Roma.
É durante a oração diária da manhã que são formulados os pensamentos a comunicar durante o dia. Mas, a par desta continuidade da referência ao breviário e ao missal, e, através deles, à Bíblia e aos Padres da Igreja, emerge a unidade do estilo e do conteúdo interno. O estilo chão, coloquial; o conteúdo é o mesmo que substancia a prática da vida cristã comum: virtudes teologais e cardinais (e, sobre todas, o privilégio concedido à mansidão e à humildade), o exemplo dos santos, as práticas de devoção tradicional, mas sobretudo, além destes, a oração litúrgica.
Nele, a «doutrina» alimenta-se do Livro, isto é, simultaneamente, do missal e do breviário e, através deles, da Escritura lida segundo as escansões litúrgicas. Não se pode omitir, a propósito, uma nota expressiva que resume o gosto e a sensibilidade roncallianos:
«O Missal é o depósito da sagrada doutrina, Antigo e Novo Testamento, abre ao conhecimento das almas, à admonição quotidiana como em eco da voz de Jesus; se vos agradar, atingireis a ressonância e o cântico do Céu e da Terra.»
Aqui, o rígido léxico do depósito da fé anima-se para articular a práxis pastoral, feita de celebração e de pregação, e, sobretudo, reconduz à práxis orante da Igreja a norma do crer, tornando-a num simples e substancioso momento de quotidiano estilo pastoral e de experiência acessível a cada fiel.
Ainda antes da Bíblia e antes dos Padres da Igreja, Roncalli lê o missal e o breviário, que têm um lugar singularíssimo, do ponto de vista cronológico-biográfico, e eminente, do ponto de vista quantitativo. De 1897 a 1963, Roncalli manterá uma fidelidade absoluta à recitação do breviário e, desde 1904, à celebração da missa; de algumas referências do Diário (13-19 de janeiro de 1924) conclui-se que emprega mais de duas horas diárias nesta leitura orante. Contudo, o valor primigénio dos livros litúrgicos, o facto de terem sido durante um certo tempo a leitura de Roncalli, emerge não do facto de que eles são preferidos às outras leituras, mas por terem fornecido o modelo da estrutura de toda a sua cultura; de facto, os livros litúrgicos estão concebidos por definição, a priori, em vista a um repensamento contínuo e progressivo. E nisto aparece o seu valor estruturante: Roncalli não mostra intolerância pelas mediações que eles oferecem, mas salta, de maneira quase sistemática, para uma leitura direta e mais centrada, começando precisamente esta aventura pelos trechos escriturísticos e patrísticos que tais instrumentos ofereciam à meditação.
Roncalli não teve dificuldade em deixar que as suas virtudes privadas se transpusessem para as virtudes públicas do Papa; antes, foi precisamente por isso que suscitou um consenso inaudito, exercendo uma influência histórica inversamente proporcional à breve duração do seu pontificado. O «ofício papal» foi vivificado pela santidade autêntica e, por isso, audaz de um cristão, e toda a Igreja, como cada homem, foi iluminada e aquecida por ele. Havia séculos que nenhum Papa exaltava tanto o Papado romano quanto Roncalli, não pelos atos que ele realizou – embora importantes: Concílio, ecumenismo, empenhamento na paz –, que também outros consumaram, mas porque o antigo «Angelino» de Sotto il Monte restituiu um rosto evangélico e, por isso, autenticamente humano, ao Papado. Porque ajudou milhões de mulheres e de homens, frequentemente pobres de bens e de esperança, e «distantes», a sentirem-se próximos não de um homem poderoso, mas benévolo e condescendente, de um irmão que indicava Jesus, convidando cada homem a esperar nele e a senti-lo próximo.
O testemunho definitivo de tudo isto foi dado por Roncalli com a sua morte, que constituiu a grande experiência evangélica do nosso tempo. Isto é, um ato de fé, de esperança e de fraternidade, tão transparente que pôde ser entendido no seu significado profundo por uma ilimitada multidão de irmãos. Como o pensamento de Francisco de Assis, a morte de João atualizou para a humanidade a cruz de Cristo, num modo tão imediato quanto autenticamente misterioso. Também diante da morte, Roncalli soube conservar um estilo simples, extinguindo-se como cristão comum e, por isso, deixando espaço para «uma irrupção inaudita de participação coletiva. Os dias que conduziram ao seu falecimento, dia 3 de junho de 1963, foram uma ocasião de comunhão na fé e na esperança para centenas de milhões de homens. Na morte deste «servo», eles reconheceram um ato de vida. Como só pode acontecer excecionalmente, a morte não suscitou temor nem terror, mas fraternidade e expetativa. A morte de João não teve nada de principesco, e nem sequer de anónimo. O consenso da Igreja não foi provocado por sentimentos de sujeição nem de reconhecimento popular, mas do mistério de uma transparência de Cristo tão forte e inesperada, sobretudo num Papa, que se impôs a crentes e a não-crentes.
O Papa, que teve de valorizar o consenso eclesial para superar as resistências encontradas pelas suas iniciativas de renovamento, tinha posto em movimento um fenómeno de proporções planetárias. A sua piedosa morte foi voluntariamente transformada em ato público pelo povo, na ânsia de sancionar que nada podia ser disperso daquilo que, com ele, cada homem e a Igreja tinham encontrado. A harmoniosa fusão de virtudes privadas e públicas culminou naquele Pentecostes, em que os indivíduos e a Igreja tiveram uma ocasião histórica para se compreenderem em profundidade, para intuírem a direção na qual a humanidade está a mover-se. Aquela morte é património da Igreja, do Concílio e da humanidade: na singular coincidência de sacrifício de um justo que era simultaneamente chefe e mestre.
Uma morte marcada, como toda a vida precedente, pelo selo da mansidão, da obediência e da humildade, mas também caracterizada por um grande projeto de renovação, destinada a ser alimento para a fé de muitos.
Precisamente uma morte assim impede que se banalize o papa João, recorrendo a estereótipos como o do «Papa bom». Não é por acaso que esta definição tem sido usada, por conter o significado do consenso popular sobre o papa Roncalli, reduzindo-o a uma apreciação pelas suas qualidades pessoais de bonomia e excluindo a sua adesão aos conteúdos fortes e caracterizadores. Fazendo assim, tenta-se separar o que Deus uniu; tão lúcida foi a consciência de João que as suas virtudes pessoais, a sua avaliação do empenhamento histórico da Igreja, a sua descoberta da fraternidade como estilo cristão em todos os níveis constituíam uma unidade indivisível.
Com um crescendo incessante, desde o primeiro Natal do seu pontificado até ao luminoso Pentecostes da sua morte, foi a todos patente a fundamental, simplíssima e sobrenatural unidade do seu ser e do seu agir. Nele, o Sumo Pontífice (no sentido historicamente mais autêntico e mais operativo sobre os destinos da sociedade humana) e o Servo de Deus (no sentido mais absoluto e mais interior) atingiram uma perfeita coincidência e uma recíproca justificação que já não permitem reconhecer um sem o outro.
Todos os que, por formação e por interesses eminentemente temporais e históricos, consideraram e consideram sobretudo a revolução operada pelo homem de governo, não podem, todavia, deixar de concordar sobre a estreita dependência das opções programáticas, dos métodos de execução e dos estilos tão rápidos e extraordinários, da pureza e da riqueza mais do que humana da sua alma. É mais precisamente a partir daquelas virtudes peculiares de humildade, de mansidão, de abandono, de fé, de esperança e de caridade que ele possuía, não somente em grau altíssimo, mas também com um timbre muito pessoal e original, tão inspirado que parece transcender todo e qualquer exemplo nobilíssimo de retidão e de lealdade humana. À sua volta, aqueles que por deliberada perspetiva religiosa, ou também só por inconsciente sensibilidade à atração da virtude ou do mistério, prestam a sua atenção sobretudo à luz espiritual desta alma, não podem deixar de reconhecer que o carisma próprio do papa João chegou, nele, a uma tal unidade entre natureza e graça, entre vida interior e ação de governo, entre serviço eclesial e serviço simples e universalmente humano, que hoje não é possível considerar e admirar a sua santidade, sem aceitar sinceramente e procurar compreender até ao fundo as intenções essenciais do seu governo e do seu magistério eclesial e histórico.
No momento da sua eleição, verificou-se nele um facto novo: a soma de convicções e de virtudes que constituíam todo o seu mundo interior de cristão e de sacerdote, o seu grande amor a Deus e aos homens, e certamente a nova luz e o novo fogo de Espírito Santo que se apoderou dele naquele instante, as necessidades e as possibilidades há muito tempo conhecidas e as que num instante ele entreviu na Igreja e na humanidade inteira, tudo concorreu para um único efeito e uma resolução completamente coerente: a decisão elementaríssima e simplíssima, mas imprevisível e imprevista para muitos, a decisão de querer ser mestre e guia de todos os homens, de que Deus o tinha querido para sucessor de Pedro e que, por isso, desde então lhe dava a ele, que sempre tinha obedecido, a obediência de mandar e apascentar os outros, isto é, todos os homens.
Ainda não se deu suficiente atenção ao carácter categórico desta sua decisão. Tudo nele continuava como antes, sobretudo quanto ao seu propósito fundamental de humildade, de mansidão, de despojamento e de simplicidade. Num novo desenvolvimento coerente, absoluto e vigoroso ganhava corpo, revestida da maior naturalidade, a determinação de obedecer até ao fundo a Deus, que queria que doravante ele comandasse e ensinasse. A obediência não cessava, mas constituía-o chefe e exemplo. Quem exalta e contempla a sua virtude não pode deixar de convir que este homem, a partir do momento em que se tornou Papa, fez-se realmente, e no grau máximo de intencionalidade lúcida, pastor e doutor universal. Quem não se apercebe disto admira uma santidade imaginária que, talvez, possa ser de outros, mas não é a real do papa João. João XXIII é o Papa que, desde as primeiras palavras com que aceitou a eleição, definiu assim antecipadamente a sua obra como a que se destinava a
«preparar para o Senhor um povo perfeito, endireitar as suas veredas a fim de que os caminho tortos se endireitem, os ásperos se tornem planos, para que cada homem veja a salvação de Deus (Lc 3,4-6).»

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